
Em 1990, o porcentual de muçulmanos na Europa era de 4%. Já a perspectiva para 2030 é de 8%, crescendo principalmente em países da Europa Ocidental. Nessa região, é estimado que a população de muçulmanos terá crescido mais de 300% entre 1990 e 2030. A partir desse cenário, alguns discursos têm se acirrado: enquanto muitos convivem pacificamente, certos grupos esticam a corda em termos de cultura, religião e costumes.
André Ventura, político de extrema-direita do partido Chega, de Portugal, afirmou: “Ninguém quer que, daqui a 30 ou 40 anos, a União Europeia seja composta de indivíduos vindos de qualquer outro continente menos deste nosso, que é o continente europeu!”. A fala de Ventura repercute um argumento anti-imigração que teme uma suposta virada demográfica – e portanto cultural e étnica – no continente. Segundo essa narrativa, a imigração hoje assume proporções nunca antes vistas e que deve ser controlada.
História da Europa
O pesquisador do Grupo de Trabalho Oriente Médio da USP, Augusto Veloso, começa comentando que a imigração de outros continentes para a Europa não é coisa recente, apesar que por vezes se faz parecer: “Esse fenômeno acontece desde o final da Segunda Guerra Mundial, quando tem o Plano Marshall de reconstrução da Europa que vai promover um crescimento econômico muito forte nesses países e que vai, portanto, atrair muita mão de obra”.

Os primeiros a chegar na Europa Ocidental são os próprios europeus vindos do leste. Mas, a partir da década de 70, pessoas de outros lugares, como Turquia, passaram a integrar as massas de trabalhadores. As diferenças culturais e étnicas dessa nova onda não são recebidas da mesma forma: “Aí vai começar a aparecer no discurso político essas questões de integração de imigrantes e da necessidade de frear a imigração e da necessidade de conter a chegada dessas pessoas”, diz Veloso.
Hoje, na União Europeia, são 38 milhões de estrangeiros nascidos fora da UE, contabilizando 8,5% da população. Mas, segundo Veloso, o número em si não é o cerne da questão: “As mudanças demográficas acontecem, mas não bastam para justificar isso”. Ele diz que a chegada de estrangeiros é um fenômeno natural na história da Europa e que não é porque agora tem mais imigrantes que a situação muda por completo.
Ele afirma que o que direciona o discurso de receio e tensão é menos sobre quantos chegam e mais sobre quem chega: “A sensação de ameaça é direcionada a corpos específicos, o corpo racializado, o corpo pobre. Há outros corpos, por exemplo os ucranianos, que são recebidos nessa chave de ‘são próximos, são quase europeus, são brancos’”. Desde o começo da guerra contra a Rússia, 4,3 milhões de ucranianos pediram asilo na União Europeia, que por sua vez não hesitou em ajudar.
Imigrantes extremistas?
Em seguida, ele comenta sobre o estereótipo de que os preconceitos são intrínsecos aos muçulmanos. Os Estados de onde eles vêm realmente têm problemas institucionalizados, mas é preciso ter cautela em assumir que as pessoas carregam consigo esse caráter autoritário dos Estados. “As pessoas que são devotas muçulmanas se beneficiam da liberdade religiosa no momento em que elas podem viver de maneira tranquila e sem se preocupar se a sua religião vai ser, em determinado momento, considerada ilegal ou restrita de alguma maneira. No momento em que elas se mudam para a Europa, isso faz parte também da opção de se mudar para a Europa”, afirma Augusto Veloso.
“Explora-se politicamente a situação de que, nesses países, têm ditaduras, regimes autocráticos que limitam os direitos, muito baseados também numa mesma perspectiva de que, se não limitarem esses direitos, se não atuarem fortemente no controle da cultura, o país vai entrar em decadência.” Ele afirma que esse discurso da extrema-direita é muito similar ao que as próprias ditaduras criticadas costumam fazer.
André Ventura já afirmou que “é preciso controlar as hordas de imigrantes que tentam invadir a Europa. Somos pela manutenção de uma Europa cristã, de valores, de tradições, que respeita os seus povos”. Em seu partido, há a proposta de “impedir o avanço do fundamentalismo islâmico e garantir que as novas comunidades respeitem a lei da liberdade religiosa, os direitos humanos, nomeadamente os direitos das mulheres e crianças”. A ideia de liberdade, nesse sentido, passa pela restrição de valores não cristãos.

Contradições no discurso
A narrativa de que é preciso proteger a cultura de agentes autoritários acaba por, paradoxalmente, fazer justamente aquilo que querem evitar. É o caso da França, que no ano passado proibiu o uso da abaya, sendo que em 2004 havia proibido também o véu islâmico nas escolas. “Eu acho que essa é uma restrição muito importante à liberdade religiosa e um precedente perigoso para que as pessoas que praticam a religião muçulmana se sintam discriminadas, se sintam violadas nas suas crenças e que, portanto, há ali um fruto de preocupação muito grande para que essas pessoas se sintam forçadas a reagir de maneira violenta também, uma vez que elas estejam vivendo opressões e sendo impossibilitadas de viver as suas próprias religiões de maneira livre”, diz o pesquisador.
Paulo Daniel Farah, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, complementa, aprofundando a hipocrisia nessa suposta defesa dos direitos humanos. “Este é exatamente o discurso da extrema-direita, que instrumentaliza a gramática de direitos humanos e relativiza certas violações quando ocorrem em países do norte global ou em aliados. Por exemplo, massacrar crianças e mulheres e bombardear escolas e hospitais, por vezes, não recebem as críticas nem as ações necessárias para interromper massacres e genocídio. Dito isso, toda violação de direitos humanos, incluindo LGBTQIA+ fobia, misoginia e sexismo precisa e deve ser combatida. O problema é quando isso é feito não em nome dos direitos humanos, mas para justificar expulsões, violências múltiplas e violações em geral.”
*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira
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