Não adianta fingir que não. A extrema-direita avança firme no mundo, vide a eleição de Geert Wilders na Holanda e Milei na Argentina, para mencionar as mais escandalosas. Crimes de guerra e crimes contra a humanidade, vide a situação na faixa de Gaza, ou na Ucrania, ou entre os rohingyas de Myanmar, refugiados em Bangladesh e ameaçados de expulsão se tornaram lugar-comum. No Brasil, a explosão de feminicídios e da criminalidade, no campo e nas cidades, é aterradora. Não adianta fingir que não, pois este cenário de horror não cede, só promete aumentar.
A violência, dizia Hegel, é a parteira da história. O passado recente está lotado delas, como os campos de extermínio do III Reich, os gulags soviéticos, o Khmer Rouge no Camboja, o genocídio em Ruanda, a invasão do Vietnã, a matança na guerra dos Balcãs, um sem número de exemplos. Mas essas atrocidades, quando vinham a público, causavam aversão (lembram da foto da menina vietnamita queimada por napalm?).
Hoje, fotos e vídeos de teor tão repugnante quanto o da menina vietnamita se multiplicaram em milhares e são tão espetacularmente cotidianos que, em vez de gerar indignação, causam tédio por sua repetição monótona. É por isso que insisto em dizer que vivemos na era da crueldade, na qual o sadismo virou regra, não espanta mais ninguém e está encapsulado por uma couraça de indiferença.
Isso só se tornou possível porque a indiferença, o “não tenho nada com isso”, se apossou de nós. A crueldade, para diferenciá-la da violência, implica gozo do perpetrador e certo entretenimento no espetáculo. Não é novidade, pois nunca faltou público para os gladiadores do Coliseu romano ou para a queima de hereges pela Inquisição. Mas também nunca foi tão generalizada, trivial, rotineira como agora. A crueldade é um ato de gozo. Assistam ao filme The Search, cujo protagonista é uma criança chechena que escolhe a mudez como defesa contra o sadismo da soldadesca russa. Será que a mudez também nos atingiu? E que só há duas alternativas, ou o cinismo conivente ou a ingenuidade inócua? A opinião pública pode não mudar o mundo, mas o torna menos intolerável. É bom lembrar disso, antes das calamidades baterem à sua porta.
Conflito e Diálogo
A coluna Conflito e Diálogo, com a professora Marília Fiorillo, vai ao ar quinzenalmente sexta-feira às 8h, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9 ) e também no Youtube, com produção da Rádio USP, Jornal da USP e TV USP.
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