Copa do Mundo no Brasil pode ser fator decisivo para aumentar a visibilidade do futebol feminino

Especialista diz que em outros esportes no País, como no vôlei, não há distinção de importância e público entre as modalidades feminina e masculina

 Publicado: 17/07/2024
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A visibilidade aumentou graças a entidades reguladoras, como a Fifa, a CBF e a Conmebol, que obrigaram os clubes a terem equipes de futebol feminino – Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil via Wikimedia Commons/CC BY 2.0
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Em Congresso da Federação Internacional de Futebol (Fifa), realizado na Tailândia, o Brasil foi oficialmente eleito como sede da Copa do Mundo Feminina de 2027. A candidatura brasileira superou o segundo lugar (Alemanha, Bélgica e Holanda) e representa a primeira vez em que a competição será disputada em território sul-americano. De acordo com Ary Rocco, professor da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE) da Universidade de São Paulo, a sede no Brasil vai atrair a atenção internacional, envolvendo organizações esportivas, a mídia global, além de indústrias e patrocinadores de todo o mundo, o que pode gerar um grande impacto e avanço na visibilidade da modalidade.

“Também existe uma questão social que é bastante importante, o futebol feminino vai estar diariamente na agenda da mídia no País, e isso tem um estímulo do ponto de vista da prática esportiva, principalmente para jovens que vão começar a enxergar, na modalidade, uma perspectiva de atuação profissional. Um claro exemplo disso é o skate, o sucesso da Rayssa Leal tem aumentado a procura, principalmente entre jovens meninas, pela prática do skate no País. Se a Seleção Brasileira Feminina fizer uma boa performance, eu não tenho dúvida nenhuma que isso vai ser um indutor para o aumento da prática da modalidade”, comenta.

Ary José Rocco Jr. – EEFE-USP – Foto: Divulgação/EEFE

Para Fernando José Lourenço Filho, pesquisador no Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (Ludens) e mestre em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), ambos da USP, a realização da Copa do Mundo em solo brasileiro coroa e auxilia ainda mais o crescimento do futebol feminino no Brasil, em termos de visibilidade e de se formar um público torcedor. Ele explica que, em outros esportes, como no vôlei, não há distinção de importância e de público entre as modalidades masculina e feminina, já que ambas são consideradas equivalentes e possuem o mesmo prestígio. No futebol, a Copa pode ser um fator decisivo para isso acontecer.

Comportamento da torcida e visibilidade

Além do possível aumento da visibilidade e das torcidas na modalidade através da Copa do Mundo, um outro fator comentado por Lourenço Filho é a mudança, no Brasil, do comportamento das torcidas, devido a uma elitização nos estádios e, principalmente, a uma maior presença das mulheres nos jogos. “A torcida no futebol feminino tem um perfil um pouco diferente, não é aquele perfil tradicional que você vê nos jogos masculinos. Uma coisa que é positiva é a questão de uma conscientização maior da torcida em relação a um posicionamento contra comportamentos machistas, contrários à homofobia. Tradicionalmente, as torcidas de futebol foram campos da masculinidade, e isso vem se transformando, com o rompimento das torcidas como um espaço exclusivo da masculinidade e a presença cada vez maior e constante de mulheres”, complementa.

O aumento da visibilidade, principalmente na última década, também é outro fator importante sobre o futebol feminino. O pesquisador explica que, no caso europeu, a final da Liga dos Campeões Feminina apresenta, a cada ano, um aumento significativo de público nos estádios, além de maior presença na imprensa e transmissões. No Brasil, recordes de público estão sendo batidos, seja para jogos da seleção, em grandes eventos como Olimpíadas ou Jogos Pan-Americanos, ou mesmo para jogos de clubes, em especial para projetos organizados como o do Corinthians.

De acordo com Rocco, um dos motivos para esse avanço da visibilidade, a partir do início dos anos 2000, foi a atuação de entidades reguladoras, como a Fifa, a CBF e a Conmebol, que obrigaram os clubes a terem equipes de futebol feminino, e a Federação Paulista de Futebol, importante para auxiliar na maior atenção da mídia para a modalidade. Apesar disso, ele acredita que ainda há um longo caminho a ser percorrido, associado à importância que os clubes e outras organizações de prática dão para o futebol feminino.

“Nós vemos projetos e equipes de futebol feminino muito profissionais, e o exemplo do Corinthians, com ‘As Brabas’, deixa isso muito claro. É um projeto de muito sucesso esportivo e também de muito sucesso de visibilidade de imagem para o clube. Por outro lado, nós ainda temos agremiações que só têm as suas equipes de futebol feminino por exigência, e isso faz com que as competições ainda tenham equipes muito desiguais, equipes muito bem estruturadas competindo com equipes que não têm a estrutura mais adequada. Esse desequilíbrio colabora para que o interesse não seja maior; o esporte necessita, quanto mais competitividade, mais audiência, mais interesse comercial”, conclui.

Outro ponto fundamental na construção da visibilidade do futebol feminino no Brasil foi a própria Marta, não só por ser uma liderança técnica — eleita seis vezes pela Fifa como a melhor jogadora do mundo —, mas também pelo seu posicionamento, como destaca o docente. Além da Marta, outras jogadoras que vieram antes dela, como a Sissi — destaque na Copa do Mundo Feminina de 1999 —, também foram importantes para a construção e aumento da mídia na modalidade.

Fernando José Lourenço Filho – Foto: Arquivo Pessoal

Histórico e importância

Ary Rocco conta que, mesmo sem haver uma data exata de quando surgiu o futebol feminino no Brasil, algumas pesquisas indicam que na década de 1920 ele já era praticado. Contudo, em 1941, durante o governo de Getúlio Vargas, um decreto de regulamentação do esporte no País proibiu a prática da modalidade, com a alegação de que o futebol poderia causar danos ao organismo da mulher — na realidade, a medida foi política, e serviu para limitar a liberdade de expressão das mulheres. Com a proibição revogada em 1979, a regulamentação do futebol feminino no Brasil só aconteceu em 1983.

Apesar de específico, o professor explica que o contexto brasileiro não foi único, se repetindo ou se assemelhando a outros países. Ele afirma que, nos anos 1990, a modalidade passou a ser enxergada por organizações como a Fifa e o Comitê Olímpico Internacional, com a criação da Copa do Mundo Feminina em 1991 e a entrada do futebol feminino na Olimpíada de 1996, essenciais para criar um interesse midiático, de caráter mundial, para a modalidade.

“O futebol feminino sempre representou um espaço de luta das mulheres, por uma liberdade maior de expressão, não só aqui no Brasil, mas no mundo como um todo. As mulheres tinham a sua liberdade de expressão, inclusive em outros campos da vida social, restrita. Então o futebol feminino foi um campo de batalha onde as mulheres foram conquistando pouco a pouco o seu espaço. O esporte, de uma forma geral, é um reflexo da sociedade, um elemento cultural fundamental. Ele vivencia diversos campos de tensões que existem no contexto social, é um campo onde as conquistas acontecem primeiro no esporte e depois vão ganhar o resto da sociedade”, acrescenta.

Fernando José Lourenço Filho finaliza: “Roberto DaMatta, um antropólogo, dizia que o futebol é uma dramatização da sociedade, ou seja, o que acontece no futebol é um reflexo do que acontece na sociedade. Então, uma maior visibilidade do futebol feminino colabora também nas lutas feministas. As bandeiras defendidas pelo futebol feminino refletem em outras lutas feministas que estão presentes na sociedade”.


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