A coluna de hoje (7) retoma a análise de fatores que estão afetando o funcionamento do regime democrático no Brasil. O País conseguiu superar as graves ameaças que rondavam a democracia nos anos que antecederam as eleições de 2022 e, mais grave ainda, a tentativa em 8 de janeiro do ano passado de um golpe de Estado articulado por atores do governo anterior, com o objetivo de derrubar o governo eleito em 2022. A superação dessas tentativas de quebra da ordem constitucional foi vista no País e no exterior como um sinal de consolidação da democracia no Brasil; contudo, o primeiro ano do governo Lula, com as suas vitórias e as suas contradições, evidenciou problemas que desde a crise política de 2014 afetam o desempenho no sistema político estabelecido pela Constituição de 1988.
O primeiro problema está relacionado com a quebra da harmonia adotada pelo texto constitucional entre os poderes republicanos. Por um lado, o Congresso se apropriou de competências e prerrogativas que eram próprias do Executivo, praticamente levando ao colapso do presidencialismo de coalizão e prefigurando uma espécie de Parlamentarismo congressual, em que o presidente da Câmara tem tantos ou mais poderes que o presidente da República nas decisões sobre o orçamento do governo. Lula deu participação a vários partidos na composição do seu Ministério, mas frequentemente sofre derrotas provocadas por parlamentares e esses partidos que integram a coalizão governante; isso transparece, por exemplo, no caso do veto do presidente Lula a 5,6 bilhões previstos para emendas de comissão – o veto mostrou o incômodo do presidente com a política de Arthur Lira, presidente da Câmara, e seus aliados, de ampliar cada vez mais o chamado orçamento impositivo.
Os parlamentares se preparam para derrubar o veto do presidente e, ampliando o conflito, preparam-se também para derrubar a medida provisória que retomou a proposta do ministro da Fazenda de pôr um fim nas desonerações de setores da economia. Mas, além do conflito entre Parlamento e Executivo, senadores e deputados preparam projetos de lei destinados a limitar os poderes do Supremo Tribunal Federal. O Senado já aprovou, no ano passado, limites à prática de decisões burocráticas dos ministros da Corte Suprema, algo que o próprio STF já tinha regulado, mas o senadores e alguns deputados querem ir além disso na limitação das prerrogativas do Supremo. A premissa, aparentemente endossada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, é de que a Corte invadiu áreas que são próprias ao Parlamento, como no caso do Marco Temporal e questões relativas ao uso de drogas.
O STF tem autorizado também ações da Polícia Federal quando existem indícios de crimes cometidos por parlamentares. O conflito pode se agravar, se as iniciativas forem adiante, e evidencia a sua intensidade pela ausência do presidente da Câmara na abertura das atividades do Judiciário deste ano. Lira foi a única autoridade da esfera federal que não se fez presente no ato no STF. A quebra da harmonia entre os poderes republicanos não esconde, contudo, problemas reais do funcionamento das instituições democráticas: um exemplo recente foi, por exemplo, a decisão solitária do ministro Dias Toffoli, suspendendo a multa de R$ 2,7 bilhões que a Odebrecht tinha se comprometido a pagar em virtude da sua participação nos crimes de corrupção na Petrobras. Os próprios executivos da empresa confirmaram a participação da mesma no caso denunciado pela operação Lava Jato. E isso que justificou o acordo de leniência assinado pela empresa perante o Ministério Público e o Judiciário.
A decisão monocrática de Toffoli desqualifica as ações adotadas por aqueles organismos de controle e pode aumentar o descrédito e a desconfiança de parcelas majoritárias da população com instituições como o Judiciário. O conflito entre as instituições ameaça a sua eficiência e a sua capacidade de responder as críticas da opinião pública, mas, além disso, num contexto em que a democracia está em crise em toda parte do mundo, o conflito entre o Congresso e o presidente e entre o Parlamento e o STF reforça a tendência à perda de legitimidade, que é tão importante para a democracia ter capacidade de resolver em paz os conflitos próprios de sociedades complexas e desiguais como o Brasil. Isso afeta a qualidade da democracia.
Qualidade da Democracia
A coluna A Qualidade da Democracia, com o professor José Álvaro Moisés, vai ao ar quinzenalmente, quarta-feira às 8h30, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9 ) e também no Youtube, com produção da Rádio USP, Jornal da USP e TV USP.
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