“Espelhos Inversos”: como é a autopercepção de pessoas socialmente diversas?

Resultado de pesquisa na USP, documentário examina os efeitos psicológicos e coletivos do racismo, da transfobia e de preconceitos contra pessoas que não se encaixam em padrões sociais

 26/02/2024 - Publicado há 9 meses
Em Espelhos Inversos (51 min), o pesquisador entrevista pessoas com características que se diferem do chamado padrão social: Josina é uma mulher preta, T’Angel e Rô são pessoas trans não-bináries e Cesar é uma pessoa com deficiência física congênita – Imagem: Sérgio Felix/Youtube

 

Diante do preconceito e do estigma de pertencer ao espectro da diversidade no Brasil, como as pessoas “fora” do padrão social se relacionam com a própria imagem? E como a sociedade influencia na maneira com que cada pessoa constrói a sua identidade? O psicólogo Sérgio Felix da Silva examinou os efeitos psicológicos e coletivos do racismo, da transfobia e de outros preconceitos em sua dissertação de mestrado intitulada Espelhos inversos: os constructos da autoimagem, autoconceito e autoestima sob os olhos da diversidade social no Brasil

Sérgio Felix da Silva é psicólogo, natural de União dos Palmares, Alagoas, e realizou sua pesquisa junto ao Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos da USP – Foto: arquivo pessoal

Sérgio investigou como a diversidade social de cada indivíduo é percebida por ele próprio e afeta a sua autoestima, o seu autoconceito e a sua autoimagem, além de analisar os efeitos da discriminação e da desigualdade sobre tais conceitos. O pesquisador utilizou a metáfora dos espelhos inversos para expressar “como qualquer pessoa que se diferencia da norma, do normal, dentro de uma sociedade fundamentalmente excludente e preconceituosa e discriminante, se vê no espelho”. 

O trabalho foi defendido no Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades da Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e orientado por Reinaldo Miranda de Sá Teles, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, no final de 2023. Como parte da dissertação, Sérgio produziu um documentário premiado no 6º Festival e Mostra de Audiovisual do Núcleo de Produção e Pesquisa em Audiovisual ImaRgens, nas categorias Melhor filme documentário e Escolha do público.  

De acordo com a divulgação, o filme se propõe a traçar uma possível interlocução entre os olhos de quem se vê no espelho – por meio dos seus reflexos na história contada, percepções subjetivas e singularidades – e os demais olhares estrangeiros que permeiam o paralelo cotidiano. Com 51 minutos de duração, o documentário é uma combinação de quatro entrevistas conduzidas pelo pesquisador com Josina Maria de Jesus Bezerra, T’Angel, Rô Vicente e Cesar Trevisan. Cada um deles possui uma característica que se difere do chamado padrão social: Josina é uma mulher preta, T’Angel e Rô são pessoas trans não-bináries e Cesar é uma pessoa com deficiência física congênita.  

Tripé da autopercepção

Os três conceitos-chave discutidos na pesquisa são a autoestima, a autoimagem e o autoconceito. O orientador da dissertação explica que a autoestima diz respeito às avaliações que o sujeito faz sobre si mesmo. De acordo com o docente, é o quanto uma pessoa se considera capaz, importante e valiosa e isso “pode traduzir como ela reivindica seu espaço no mundo”.

A autoimagem se constitui na interação da pessoa com um contexto social, sendo responsável pela construção de sua imagem para si mesma. Nas palavras do professor Reinaldo, “a autoimagem é resultante de uma interação social”. Sérgio complementa o conceito em sua dissertação: “Pode-se pensar o quanto as representações simbólicas preponderantes, que fundamentam o imaginário coletivo e constroem os estereótipos, preconceitos, discriminações e segregações, podem atingir o âmbito individual, implicando decisivamente na forma como cada pessoa vê a si mesma”. Para o autor, a autoimagem de cada um é fortemente influenciada pelos preconceitos e afirmações recebidas ao longo da vida. Se uma pessoa cresce pensando que a sua orientação sexual é errônea, por exemplo, o jeito que ela constrói sua personalidade é influenciado por essa interação, afetando seu pertencimento social e autoestima, por exemplo. 

Segundo a dissertação, o autoconceito “poderá alterar o modo como alguém vê algo (autoimagem) e como o valoriza (autoestima)”. Isso significa que o autoconceito é a percepção que se tem sobre a autoimagem e o valor que é dado para ela se traduz em autoestima. O professor Reinaldo comenta que o autoconceito também ultrapassa a barreira da individualidade do ser, pois não vivemos isolados. “Muito daquilo que se constrói a partir de mim é aquilo que a sociedade coloca como referência”, explica.

Os três conceitos debatidos na pesquisa, segundo os pesquisadores, estão intrinsecamente ligados. “Se eu tenho uma ideia negativa a meu respeito, eu vou ter uma autoimagem negativa também. Um [conceito] alimenta o outro”, afirma Sérgio. 

 

De Palmares à banca

Sérgio Felix da Silva é natural da Serra da Barriga, Alagoas, mais precisamente de União dos Palmares – local que foi sede do maior quilombo do Brasil e hoje é sinônimo de resistência dos povos escravizados oriundos do continente africano. O pesquisador comenta que o fundador do quilombo, Zumbi dos Palmares, foi o seu “primeiro inspirador” para a pesquisa, por ser uma pessoa que se opôs ao estado de opressão e desigualdade e lutou por liberdade e justiça. 

A ascendência indígena é, para o pesquisador, mais um motivo que o liga ao tema estudado. “Embora eu não tenha nascido dentro de uma comunidade indígena, a minha família [também] perdeu esse elo com a sua ancestralidade”, comenta.

Em sua cidade, Sérgio sempre esteve ligado a ações sociais: foi dono de uma escola filantrópica que chegou a ter 120 alunos, trabalhou como professor em orfanatos e coordenou um programa de inserção profissional de pessoas com deficiência. Num primeiro momento, o psicólogo não tinha pretensão de desenvolver uma pesquisa de mestrado, mas a linha de pesquisa proposta pelo grupo de pesquisa desenvolvida pelo Diversitas o atraiu. “Já tenho 51 anos, tenho uma clínica aqui na Vila Mariana, um espaço terapêutico. Já tinha quase desistido de fazer mestrado quando eu soube dessa proposta”.

Banca examinadora composta por quatro pessoas pretas. Entre elas, está o orientador da dissertação, Reinaldo Miranda de Sá Teles – Imagem: Arquivo pessoal de Sérgio Felix

Já na avaliação da dissertação, a banca examinadora foi composta integralmente por pessoas pretas. O orientador de Sérgio conta que, desde que começou a participar de bancas de mestrado e doutorado como professor da Universidade, em 2002, foi a primeira vez que conseguiu montar uma banca totalmente preta. “Isso pra mim foi uma alegria! Eu fiquei tão emocionado quando montei essa banca…”, comenta o professor Reinaldo. 

Os examinadores foram: Rosângela Aparecida Hilário, professora do Departamento de Ciências da Educação da Universidade Federal de Rondônia; Jussara Nascimento Santos, doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos e professora da rede pública do município de São Paulo; Felipe Chibás Ortiz, livre docente pela ECA, e o próprio professor Reinaldo Miranda de Sá Teles.

Ter uma banca preta à sua frente fez Sérgio se sentir ouvido. “Eu tive a sensação de que a minha palavra estava sendo, de fato, escutada e compreendida dentro da minha proposta”. A composição da banca também foi coerente com a sua “proposta de desconstrução dos rigores epistemológicos, que estamos olhando pelo lado de dentro dos olhos”. Para o pesquisador, isso significa que o conhecimento produzido foi avaliado por pessoas que têm vivências semelhantes às estudadas, trazendo uma sensibilidade crucial para a compreensão do tema. 

 

*Isabel Briskievicz Teixeira, do LAC – Laboratório Agência de Comunicação. Adaptado por Tabita Said


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