Diante do preconceito e do estigma de pertencer ao espectro da diversidade no Brasil, como as pessoas “fora” do padrão social se relacionam com a própria imagem? E como a sociedade influencia na maneira com que cada pessoa constrói a sua identidade? O psicólogo Sérgio Felix da Silva examinou os efeitos psicológicos e coletivos do racismo, da transfobia e de outros preconceitos em sua dissertação de mestrado intitulada Espelhos inversos: os constructos da autoimagem, autoconceito e autoestima sob os olhos da diversidade social no Brasil.
Sérgio investigou como a diversidade social de cada indivíduo é percebida por ele próprio e afeta a sua autoestima, o seu autoconceito e a sua autoimagem, além de analisar os efeitos da discriminação e da desigualdade sobre tais conceitos. O pesquisador utilizou a metáfora dos espelhos inversos para expressar “como qualquer pessoa que se diferencia da norma, do normal, dentro de uma sociedade fundamentalmente excludente e preconceituosa e discriminante, se vê no espelho”.
O trabalho foi defendido no Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades da Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e orientado por Reinaldo Miranda de Sá Teles, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, no final de 2023. Como parte da dissertação, Sérgio produziu um documentário premiado no 6º Festival e Mostra de Audiovisual do Núcleo de Produção e Pesquisa em Audiovisual ImaRgens, nas categorias Melhor filme documentário e Escolha do público.
De acordo com a divulgação, o filme se propõe a traçar uma possível interlocução entre os olhos de quem se vê no espelho – por meio dos seus reflexos na história contada, percepções subjetivas e singularidades – e os demais olhares estrangeiros que permeiam o paralelo cotidiano. Com 51 minutos de duração, o documentário é uma combinação de quatro entrevistas conduzidas pelo pesquisador com Josina Maria de Jesus Bezerra, T’Angel, Rô Vicente e Cesar Trevisan. Cada um deles possui uma característica que se difere do chamado padrão social: Josina é uma mulher preta, T’Angel e Rô são pessoas trans não-bináries e Cesar é uma pessoa com deficiência física congênita.
Tripé da autopercepção
Os três conceitos-chave discutidos na pesquisa são a autoestima, a autoimagem e o autoconceito. O orientador da dissertação explica que a autoestima diz respeito às avaliações que o sujeito faz sobre si mesmo. De acordo com o docente, é o quanto uma pessoa se considera capaz, importante e valiosa e isso “pode traduzir como ela reivindica seu espaço no mundo”.
A autoimagem se constitui na interação da pessoa com um contexto social, sendo responsável pela construção de sua imagem para si mesma. Nas palavras do professor Reinaldo, “a autoimagem é resultante de uma interação social”. Sérgio complementa o conceito em sua dissertação: “Pode-se pensar o quanto as representações simbólicas preponderantes, que fundamentam o imaginário coletivo e constroem os estereótipos, preconceitos, discriminações e segregações, podem atingir o âmbito individual, implicando decisivamente na forma como cada pessoa vê a si mesma”. Para o autor, a autoimagem de cada um é fortemente influenciada pelos preconceitos e afirmações recebidas ao longo da vida. Se uma pessoa cresce pensando que a sua orientação sexual é errônea, por exemplo, o jeito que ela constrói sua personalidade é influenciado por essa interação, afetando seu pertencimento social e autoestima, por exemplo.
Segundo a dissertação, o autoconceito “poderá alterar o modo como alguém vê algo (autoimagem) e como o valoriza (autoestima)”. Isso significa que o autoconceito é a percepção que se tem sobre a autoimagem e o valor que é dado para ela se traduz em autoestima. O professor Reinaldo comenta que o autoconceito também ultrapassa a barreira da individualidade do ser, pois não vivemos isolados. “Muito daquilo que se constrói a partir de mim é aquilo que a sociedade coloca como referência”, explica.
Os três conceitos debatidos na pesquisa, segundo os pesquisadores, estão intrinsecamente ligados. “Se eu tenho uma ideia negativa a meu respeito, eu vou ter uma autoimagem negativa também. Um [conceito] alimenta o outro”, afirma Sérgio.
De Palmares à banca
Sérgio Felix da Silva é natural da Serra da Barriga, Alagoas, mais precisamente de União dos Palmares – local que foi sede do maior quilombo do Brasil e hoje é sinônimo de resistência dos povos escravizados oriundos do continente africano. O pesquisador comenta que o fundador do quilombo, Zumbi dos Palmares, foi o seu “primeiro inspirador” para a pesquisa, por ser uma pessoa que se opôs ao estado de opressão e desigualdade e lutou por liberdade e justiça.
A ascendência indígena é, para o pesquisador, mais um motivo que o liga ao tema estudado. “Embora eu não tenha nascido dentro de uma comunidade indígena, a minha família [também] perdeu esse elo com a sua ancestralidade”, comenta.
Em sua cidade, Sérgio sempre esteve ligado a ações sociais: foi dono de uma escola filantrópica que chegou a ter 120 alunos, trabalhou como professor em orfanatos e coordenou um programa de inserção profissional de pessoas com deficiência. Num primeiro momento, o psicólogo não tinha pretensão de desenvolver uma pesquisa de mestrado, mas a linha de pesquisa proposta pelo grupo de pesquisa desenvolvida pelo Diversitas o atraiu. “Já tenho 51 anos, tenho uma clínica aqui na Vila Mariana, um espaço terapêutico. Já tinha quase desistido de fazer mestrado quando eu soube dessa proposta”.
Já na avaliação da dissertação, a banca examinadora foi composta integralmente por pessoas pretas. O orientador de Sérgio conta que, desde que começou a participar de bancas de mestrado e doutorado como professor da Universidade, em 2002, foi a primeira vez que conseguiu montar uma banca totalmente preta. “Isso pra mim foi uma alegria! Eu fiquei tão emocionado quando montei essa banca…”, comenta o professor Reinaldo.
Os examinadores foram: Rosângela Aparecida Hilário, professora do Departamento de Ciências da Educação da Universidade Federal de Rondônia; Jussara Nascimento Santos, doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos e professora da rede pública do município de São Paulo; Felipe Chibás Ortiz, livre docente pela ECA, e o próprio professor Reinaldo Miranda de Sá Teles.
Ter uma banca preta à sua frente fez Sérgio se sentir ouvido. “Eu tive a sensação de que a minha palavra estava sendo, de fato, escutada e compreendida dentro da minha proposta”. A composição da banca também foi coerente com a sua “proposta de desconstrução dos rigores epistemológicos, que estamos olhando pelo lado de dentro dos olhos”. Para o pesquisador, isso significa que o conhecimento produzido foi avaliado por pessoas que têm vivências semelhantes às estudadas, trazendo uma sensibilidade crucial para a compreensão do tema.
*Isabel Briskievicz Teixeira, do LAC – Laboratório Agência de Comunicação. Adaptado por Tabita Said