Arte sobre cartaz CDDH/FFLCH

Comunidade trans na USP cria rede de apoio e pesquisa para incentivar a permanência estudantil

Pesquisa consistirá em ‘trans’formar os espaços acadêmicos na construção de uma universidade mais diversa; participantes contam o que é necessário para alcançar um ambiente acadêmico inclusivo

 09/09/2022 - Publicado há 2 anos

Texto: Danilo Roberto Silva Queiroz

Arte: Rebeca Fonseca

“Eu me sinto sozinha. A ciência não é neutra e encontrei no Corpas Trans um espaço de acolhimento para me fortalecer enquanto docente travesti, já que nas ciências exatas me encontro em uma existência solitária”, lamenta Gabrielle Weber, professora da Escola de Engenharia de Lorena (EEL) da USP. Ela relata que não só no Brasil, mas nas universidades públicas como um todo, não há políticas que assegurem a permanência de estudantes da comunidade LGTQIAP+, sobretudo a comunidade trans*, até a conclusão de seus estudos.

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Pesquisa quer mapear e conhecer demandas do público trans e travesti da USP

O Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo, conforme o Relatório de Observatório de Pessoas Trans Assassinadas Globalmente, desenvolvido pela ONG Transgender Europe. Além disso, não há nenhum dado preciso que estabeleça estatisticamente quantas pessoas transgêneras, travestis e não binárias compõem os quadros de pessoas das universidades. E nem o que necessitam para permanecer reexistindo e (trans)escrevendo suas histórias de vida, diversificando os espaços que ocupam.

Assim, nasceu o Corpas Trans, projeto de pesquisa iniciado a partir da Coletiva Intertransvestigênere Xica Manicongo, movimento de estudantes trans e travestis da USP, fundada em 2020. Inicialmente os estudantes desta coletiva realizaram um primeiro mapeamento para entender a situação da população trans na Universidade, contudo foi preciso que um projeto mais amplo fosse criado.

A pesquisa

O projeto recebeu bolsas de graduação, vinculadas ao Programa Unificado de Bolsas da Pró-Reitoria de Graduação, e foi contemplado pelo Edital ODS/ONU 2021 da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária (PRCEU) da USP. Para T. Angel, pessoa freak, trans não binárie e uma das bolsistas envolvidas, a possibilidade da bolsa de estudo tem ajudado a permanecer na Universidade com mais tranquilidade. 

A pesquisa foi pensada em duas etapas. A primeira se concentra em uma análise estatística para metrificar quem, de fato, é a população trans que transita pelos espaços acadêmicos dos distintos campi da USP, além das dificuldades que enfrentam.

Esta etapa ainda está ocorrendo. Ela consiste no preenchimento de um questionário on-line, cujas respostas auxiliarão o grupo a identificar as ações que devem ser tomadas para a construção de uma rede de apoio e convivência para comunidade trans da USP. As dificuldades em regularizar o nome social e se essas pessoas já receberam algum serviço psicossocial são algumas das perguntas que integram a pesquisa. 

T. Angel, mestranda em Educação e Diferença pela Faculdade de Educação (FE) e uma das bolsistas do Corpas Trans - Foto: Arquivo pessoal

Já a segunda etapa consiste em entrevistas com as pessoas que responderam o questionário. Além disso, o grupo vem disponibilizando materiais que auxiliarão toda a comunidade que frequenta a Universidade a se reeducar e aprender melhores formas de incluir a comunidade trans em suas redes de convivência.

“Eu sei do peso que carrego por ser e ter o corpo que tenho em espaços institucionais e normativos. Estar ali logo nos primeiros meses me deu fôlego e força. A sensação de não estar sozinha, a sensação de segurança, pertencimento e acolhimento, o poder do afeto transcentrado. E tudo isso, costumeiramente, não é comum pra gente como a gente”, conta T.

Folheto informativo sobre questões trans e travestis que transpassam os muros da Universidade disponibilizado pelo Corpas Trans, que está sendo distribuído gratuitamente nos diferentes campi da USP - Foto: Reprodução/Corpas Trans

Dificuldades

O projeto de pesquisa apresenta alguns entraves que impedem a ampliação das suas atividades e disseminação. Com as atuais respostas dispostas no banco de dados vindas do questionário on-line, há um dado alarmante: 75% das pessoas têm ou tiveram ideações suicidas. Para a professora Gabrielle, isso mostra o quanto a comunidade trans necessita de políticas que garantam a sua permanência na USP, única universidade pública de São Paulo que não possui algum protocolo básico de atendimento a pessoas trans, como o uso de nome social. Ela também relata que mesmo sendo docente da Universidade essa situação demorou a ser resolvida.

Gabrielle Weber – Foto: Arquivo pessoal

“É uma questão complexa”, afirmaram todas as entrevistadas desta reportagem ao Jornal da USP. As respostas disponíveis até o momento, segundo as organizadoras, apontam que a Universidade põe em risco o psicológico da comunidade trans, pois é comum casos em que o nome de registro e o nome social se confundem diariamente, como relatam as pessoas que responderam. Seja no cartão de identificação ou nas atas de chamada nas salas de aulas, pessoas trans contam ser constante a falta de educação no tratamento pelo nome social e do pronome que as identifique corretamente. Não só por parte de estudantes, como também de docentes.

“É um tema de muito pouca visibilidade dentro da Universidade e poucas pessoas que tenham interesse em conhecer mais. Assim como a gente tem um movimento de pensar em políticas antirracistas na educação, a gente também tem que pensar em políticas antitransfóbicas na Universidade, além de pensar em formas de letramento de gênero”, explica a professore Silvana de Souza Nascimento, do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, também co-organizadora da pesquisa.

Silvana de Sousa Nascimento se identifica como professore do Departamento de Antropologia da FFLCH e vem desenvolvendo estudos sobre redes de apoio a acolhimento de pessoas trans femininas pelo CNPq - Foto: Arquivo pessoal

Quem pode participar?

Para participar é preciso ter acima de 18 anos e ser uma pessoa trans ou travesti pertencente a um dos grupos a que se destina a pesquisa: estudantes de graduação ou de pós-graduação, funcionários técnico-administrativos, pesquisadores vinculados a algum programa de pós-doutorado e docentes.

O questionário é respondido de maneira completamente anônima. De acordo com os organizadores, a privacidade dos participantes será respeitada, mantendo em sigilo o nome e qualquer outro dado que possa identificá-los. Para participar, acesse o questionário on-line.

‘Trans’passando a Universidade

O projeto vem desenvolvendo outras ações, para além da coleta de dados. Para Alê, transmasculino não binário e estudante de Ciências Sociais, desde que ingressou na Universidade, foi difícil encontrar um acompanhamento psicológico gratuito.

“Eu me sinto desassistido e muitas vezes violentado. É difícil vivenciar toda essa violência”, conta. Ele também já cursou Engenharia de Produção na Universidade Federal do Paraná (UFPR), mas considera que a experiência foi “terrível”, pois não se sentia acolhido nas exatas. Como bolsista do Corpas Trans, ele menciona que o projeto tem construído medidas para fortalecer a comunidade trans, embora acredite que ainda não seja uma prioridade da Universidade.

Contudo, a Universidade vem avançando nessa pauta, ao passo que vem estruturando uma  Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP). Criada em maio deste ano, o órgão é responsável por propor políticas inclusivas de permanência, sob a ótica da equidade. Ao integrar um movimento de reconhecimento político das diferenças, a PRIP possui uma diretoria de atenção às questões que envolvem gênero, relações étnico-raciais e diversidades.

Alê Santos, estudante de Ciências Sociais na USP e um dos bolsistas do Corpas Trans - Foto: Arquivo pessoal

Outras medidas também já foram desenvolvidas anteriormente à criação da PRIP. Como uma ouvidoria geral da USP que recebe denúncias de todos os tipos, incluindo questões ligadas a violências LBTQIA+. Além disso, há no Manual do calouro desenvolvido pela PRCEU, divulgado assim que os novos estudantes ingressam na Universidade, uma seção que instrui sobre como agir diante destas situações. Apesar disso, Alê conta que não há um serviço exclusivo para a comunidade trans, e que embora seja importante é muito difícil denunciar esses momentos tão desconfortáveis em ser vivenciados.

O grupo também já se envolveu em outras atividades, como o debate “Juntes Contra a Transfobia”, realizado em parceria com a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH) da FFLCH. Além de participarem da IV Mostra Ecofalante da USP, quando discutiram as opressões do ‘cis’tema a partir da ótica de pessoas trans. 

Alguns colaboradores do projeto de pesquisa Corpas Trans no debate Juntes Contra a Transfobia, ocorrido na FFLCH - Imagem: Reprodução/T. Angel

Atualmente cada participante do projeto vem escrevendo um livro com relatos biográficos de suas vivências particulares enquanto pessoa trans na Universidade. A proposta é escrever suas próprias histórias junto aos dados coletados neste projeto de pesquisa, ‘trans’pondo os muros da Universidade.

Para mais informações acesse:

Site: http://www.corpastrans.org
Instagram:
https://www.instagram.com/corpastransusp
Facebook:
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Twitter:
https://twitter.com/corpastransusp

*Pessoas trans, travestis e uma variedade de pessoas que não se identificam com o gênero designado no nascimento


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