Fotomontagem de Guilherme Castro/Jornal da USP com imagens de Flickr e Wikimedia Commons

No pós abolição, ex-escravos e imigrantes têm similar ascensão social no oeste paulista

Estudo analisa grupos sociais após o abolicionismo e compara seu acesso à moradia, trabalho e educação

 29/11/2022 - Publicado há 1 ano

Texto: Camilly Rosaboni

Arte: Guilherme Castro

Imaginar um cenário econômico e social capaz de comparar a população negra com a população branca e imigrante pode não ser algo fácil, mas foi exatamente isso que o pesquisador e economista Lucas Cavalcanti Rodrigues conseguiu analisar com a sua tese de doutorado defendida na Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP. O objetivo do trabalho foi buscar quais eram as condições socioeconômicas de ex-escravos e descendentes no pós-abolição, considerando três dimensões: educação, trabalho e terra. 

Entre 2018 e 2021, Cavalcanti produziu sua pesquisa de doutorado intitulada Sobre as Cinzas do Cativeiro: Educação, Trabalho e Terra entre Ex-Escravos e Descendentes Após a Abolição no Oeste Paulista, sob orientação do professor Renato Perim Colistete, da FEA. “A proposta da minha tese é comparar a população negra com a população branca nacional e o imigrante, como se fossem três nações. Eu queria saber como elas evoluíram em termos de capital humano e de capital físico”, explica o pesquisador. Seu método de pesquisa foi o estudo de dados quantitativos desses grupos étnicos na época pós-abolição, entre 1888 e 1930.

A pesquisa

Seu tema de doutorado foi inspirado no trabalho acadêmico de seu orientador, Renato Colistete, que escreveu sobre o mercado de trabalho na Terceira República do Brasil, na Universidade de Oxford, EUA, unindo os conceitos de economia aplicada e história econômica. “Para entender as coisas na economia, tem que misturar dados com história”, afirma Cavalcanti. A sua pesquisa se centralizou em analisar o mercado de trabalho na Primeira República. Com o avanço do estudo, Cavalcanti percebeu a conexão do tema com a questão racial.

Primeira República do Brasil foi o período seguinte à Proclamação da República, liderada pelo Marechal Deodoro da Fonseca, em 15 de novembro de 1889, e que se encerrou com a Revolução de 1930. Uma nova política foi instaurada no País, após a abolição da escravatura, ocorrida em 1888. Seu início foi marcado por grandes acontecimentos históricos, sobretudo no âmbito racial. 

A escolha do eixo da cidade de São Carlos, no Estado de São Paulo, no século 20, para a pesquisa, foi em razão da dificuldade em se acessar dados étnico-raciais no restante do País. “A gente não tem muita informação oficial sobre as condições socioeconômicas da população de ex-escravos, de modo geral, no período imediatamente posterior à abolição”, afirma o pesquisador. Foram feitos censos demográficos em 1890 e 1900, mas eles não abarcavam totalmente a população negra da época. “A gente não sabe perguntas básicas, como a escolaridade média da população negra no período, a renda média, o patrimônio etc.”, complementa.

Lucas Cavalcanti Rodrigues - Foto: Reprodução/Linktree

Lucas Cavalcanti Rodrigues - Foto: Reprodução/Linktree

Naquele momento, o Estado de São Paulo era um enorme expoente agrário, tendo sua história bastante documentada. Da mesma forma, São Carlos continha um grande aparato histórico registrado, tendo inclusive um censo demográfico de 1907, que citava a população negra nas temáticas da educação e renda. 

Aspectos conjunturais e estruturais

Um dos pontos centrais da tese é avaliar as dimensões de terra, trabalho e educação quanto à conjuntura da sociedade, no sentido de analisar as mudanças a curto prazo. Sua estrutura também foi estudada, junto aos fatores mais enraizados na sociedade. Com sua pesquisa, uma conclusão que o pesquisador conseguiu obter é que, conjunturalmente, devido à ascensão cafeeira, não havia dificuldade para que a classe trabalhadora de ex-escravos e imigrantes tivesse acesso às escolas, à terra e ao trabalho – apesar de que esse acesso era bastante limitado a eles. 

Além disso, devido à sua incipiente integração na sociedade brasileira, ambos os grupos podiam ser comparados no que diz respeito aos temas analisados por Cavalcanti, de terra, trabalho e educação. “Não é que não tinha discriminação nesse mercado de trabalho no pós-abolição. É que ele estava tão aquecido que o empregador tinha pouca margem para discriminar”, explica o pesquisador da FEA.

O legado da escravidão

Porém, como a estrutura da sociedade possibilitava uma escolaridade maior, desde cedo, aos imigrantes, sobretudo do sexo masculino, quando a fase do café passa, as dificuldades são sentidas principalmente pela população negra. “A mulher negra era o subgrupo demográfico de menor escolaridade no pós-abolição e isso vai impactar a escolaridade das gerações subsequentes. O mesmo vale para o acesso à terra”, afirma Cavalcanti. “A gente ficou dependendo dessas fortunas conjunturais do momento mais favorável na economia, mas sem uma política pública a longo prazo”, complementa. 

Outro objeto de análise em sua tese é o grande número de crianças negras matriculadas em escolas anos após a abolição. Lucas afirma que “a população negra se esforçou para colocar os filhos na escola mesmo sob um ambiente de violência racial muito forte”. Essa característica da época era ainda maior se a mãe fosse alfabetizada, o que, em muitos casos, não acontecia. 

Cavalcanti também estudou os bens da população negra. Estruturalmente, ela tinha acabado de ser liberta da escravidão, portanto não teria construído patrimônio, tendo, por exemplo, pouco acesso à terra. “Se você é filho de escravo, seu pai não tem patrimônio para você herdar. É como se você começasse do zero”, descreve o pesquisador. “Em resumo, a conjuntura é relativamente favorável, mas a estrutura não. Onde está a base disso? Na escravidão”, complementa Cavalcanti. 

Mesmo numa conjuntura relativamente favorável, não havia a estrutura para maior crescimento dos negros - Foto: Domínio Público

Apesar do racismo enraizado da sociedade, pessoas negras conseguiam ascensão social por suas lutas diárias. “Mesmo com todas as estruturas de violência, eles conseguiram colocar o filho na escola, ter uma pequena propriedade de terra, por causa de sua força de vontade. Não ficar só assistindo, mas participar da economia”, explica Cavalcanti. 

Vale ressaltar a disparidade entre a inserção da população negra na sociedade, comparada a de outras etnias, sobretudo, no acesso aos direitos mais básicos, como educação, trabalho, lazer e moradia. “A gente tinha a missão de fazer essas correções quando acabou a escravidão”, observa Cavalcanti. Em seguida, o pesquisador ressalta a necessidade de iniciativas públicas para alcançar a igualdade social. “Isso depende muito do papel do Estado. Ele acabou falhando na reforma agrária, não determinou políticas de terra sérias para registro e a política internacional foi muito tímida”, lamenta.

Em sua perspectiva, Cavalcanti acredita ter atingido o objetivo da tese de estudar os grupos étnicos em seu desenvolvimento pós-abolição. Porém, o pesquisador ressalta a possibilidade de expandir seu trabalho trazendo aspectos qualitativos dessas populações. “Eu gostaria de ter ampliado, principalmente, trazendo evidências de jornais e algumas argumentações que estavam sendo feitas, por exemplo, pelos contemporâneos da época sobre aquilo que eu estava estudando”, explica.


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