Fotomontagem com imagens da pesquisadora e de Freepik
Crianças migrantes e refugiadas em São Paulo são responsáveis pela segurança afetiva de seus pais
Estudo destaca o protagonismo de crianças no processo de acolhimento das famílias, revelando escassez de processos de adaptação, inclusão e de políticas públicas transculturais em saúde coletiva
O processo de migração é carregado de muitas inseguranças. Aprender um novo idioma, uma nova cultura, não são tarefas fáceis e essas mudanças afetam, sobretudo, a saúde mental daqueles que se deslocam. Um estudo de doutorado realizado pela psicóloga Gleise Sales Arias, no Instituto de Psicologia (IP) da USP, mostra que as crianças migrantes na cidade de São Paulo exercem uma posição de protagonismo na segurança afetiva de seus pais.
A tese intitulada A Experiência Emocional de Crianças Migrantes e Refugiadas Acolhidas em São Paulo, sob a orientação de Leila Salomão de la Plata Cury Tardivo, professora livre-docente do IP, teve como objetivo investigar como se dá o processo de adaptação de crianças migrantes e refugiadas e seus familiares no período de acolhimento. Considerando a experiência da migração de maneira mais ampla, dentro de um contexto político e cultural, a pesquisa identificou a migração como uma situação de crise comparada ao luto. Por meio de encontros terapêuticos e desenhos-histórias, as crianças mostraram preocupações com a família, responsabilizando-se pelo apoio afetivo dos pais.
Participaram do estudo duas crianças venezuelanas, três angolanas e uma haitiana, além de seis mães e um pai. De acordo com o estudo, a influência dos pequenos para a maior adaptação das famílias acontece porque eles estão na fase da vida responsável pelo processo de desenvolvimento cognitivo nas escolas. A pesquisa também constatou a ausência de práticas transculturais – que procura unir culturas sem estabelecer hierarquia alguma entre elas – na construção da identidade dos imigrantes. De acordo com a pesquisadora, são comuns casos envolvendo racismo e xenofobia.
“Acho que se fizermos uma boa escuta, todos nós podemos nos ouvir e nos ajudar. Acolher é o primeiro passo para integrar essas populações e garantir suas permanências aqui. Para isso, é preciso romper as fronteiras que nos separam”
Gleise Arias
A pesquisa foi realizada com o público infantojuvenil na faixa etária entre 7 e 12 anos – por ser a mais presente dentre os pedidos de refúgio no Brasil no momento de início da realização da pesquisa – e residentes no País há um ano. Gleise investigou como se expressavam as emoções entre essas famílias a partir de uma inquietação pessoal: a autora, que já foi psicóloga voluntária e trabalhou profissionalmente em diferentes equipamentos da Rede de Atenção Psicossocial do Município de São Paulo, ficou espantada com a alta demanda de crianças com suspeita de autismo encaminhadas para serviços psicológicos.
O fenômeno de confundir as diferenças culturais com transtornos de desenvolvimento global evidenciava a falta de preparo dos centros psicossociais em lidarem com um público não brasileiro. Os casos eram tão frequentes e questionados, que o jornal O Estado de S. Paulo produziu um artigo sobre o assunto.
Os resultados do trabalho apontam para a importância do apoio psicológico no acolhimento inicial dos migrantes como um método preventivo e buscando facilitar o processo de adaptação e inclusão.
Sem fronteiras
Segundo relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), São Paulo é o destino do Brasil mais procurado pela população migrante. No período em que a pesquisa foi realizada, eram três os grupos que mais chegavam à cidade paulistana: venezuelanos, angolanos e haitianos.
A pesquisadora teve contato com as populações migrantes e refugiadas no Centro de Acolhida Pari II, instituição de acolhimento de imigrantes na cidade de São Paulo localizada na região central da capital paulista. Mesmo que separados geograficamente, nas casas de acolhimento essas histórias de vida se entrecruzavam e, consequentemente, suas culturas também.
Inicialmente as emoções também eram sentidas de forma diferente assim que chegaram a São Paulo. Segundo Gleise, um novo espaço, uma nova culinária e uma nova língua podem impactar para toda a vida a identidade dessas pessoas, ainda mais na infância, uma fase da vida cuja personalidade está em desenvolvimento – de maneira biológica, psicológica e cultural. “Imigrantes e refugiados são atravessados por uma série de questões. Garantir os direitos básicos é uma delas. Essas pessoas não necessitam substituir seus idiomas e suas culturas. Viver com tudo isso é possível”, pontua a psicóloga.
De acordo com Gleise, é necessária a atuação coletiva de profissionais da saúde e educação para lidar com as emoções de recém-chegados ao Brasil, que deveriam ser vistas para além de patologias. “Não podemos somente olhar isso a partir do vértice da patologia, dos sintomas psicopatológicos. Precisamos tentar olhar para tudo isso de uma maneira mais ampla, considerando a experiência da migração como uma experiência emocional em deslocamento”, reforça. “Essas famílias não irão precisar apenas da escuta psicológica. Vão precisar da escuta de um médico, de um professor da escola, sobretudo da escuta e recepção da sociedade civil”, acrescenta ela.
A partir de entrevistas e desenhos-histórias, técnica utilizada na psicologia clínica que investiga personalidade por meio de desenhos livres, a pesquisadora traçou percepções e experiências emocionais presentes nos pais e nas crianças. Em virtude das perseguições – religiosas, étnico-raciais e de gênero – , o estudo concluiu que, após a mudança para o Brasil, eram contínuas as crises psíquicas nessas populações. Sintomas como ansiedade, insegurança e depressão foram os mais constatados.
Os desenhos-histórias analisados com tema proposto pela pesquisadora significam relações presentes no mundo emocional das crianças, que recaem sobre o mundo externo. Os nomes a seguir são fictícios, para preservar a identidade dos participantes.
Rabiscando emoções
Segurança – Adiel e sua mãe Cristina – Angola
Natural de Luanda, capital da Angola, Adiel, 11, é filho de Cristina, que trabalha como auxiliar de limpeza no Metrô de São Paulo. Migrou para o Brasil somente com a mãe. Em seu país-natal ficaram três irmãos, uma irmã e seu pai. A escolha pelo Brasil se deu, sobretudo, em virtude da língua portuguesa.
A separação da família deixou muitas marcas. Em entrevista à pesquisadora, Cristina relata a tristeza que carregava por conta desse processo. Algo que a havia marcado emocionalmente e teve certa resistência em contar foi a gravidez da sua filha ainda na adolescência. O desejo de Cristina é que ela “tivesse uma história diferente da sua.”
Algumas dificuldades de adaptação também são relatadas. A mudança de hábitos de higiene é uma delas. Na casa de acolhimento não poderia tomar mais de um banho por dia, algo que a irritava muito. A mãe de Adiel também conta que sentia falta de poder preparar seu próprio alimento.
Segundo Adiel, a história dos seus desenhos é carregada pela temática da família, de pessoas, passarinhos ou coisas. A figura materna é vista como solução de seus problemas - Imagens cedidas pela pesquisadora
Já a partir dos desenhos desenvolvidos pela criança, Gleise analisa a ausência de figuras masculinas nos rabiscos de Adiel. A mãe do garoto é vista apenas como cuidadora. Foi possível perceber também a importância e a saudade de sua própria casa como um espaço de segurança. Embora expresse as dificuldades existentes no processo de migração, a criança apresentou maiores adaptações e sensações de bem-estar pela fácil absorção da cultura brasileira, sobretudo na escola. No caso, a pesquisadora afirma “o quanto é importante que a família possa sustentar afetivamente a criança imigrante, pois ela é um elo no processo que se dá entre a cultura de origem e a adaptação à nova rede social.”
Maturidade – Gabriela e sua mãe Julia – Angola
Filha única e natural de Angola, Gabriela, 8, estava há um ano no Brasil com a mãe, Julia, e tinha medo de sair da casa de acolhimento. Era conhecida na casa de acolhimento como “uma criança que dava muito trabalho”. Ambas falavam português, crioulo e francês.
A pesquisadora ressalta o identitarismo presente nas duas mulheres por meio das roupas e adereços que utilizavam no dia da entrevista. Chamou sua atenção, também, a atitude da mãe da criança em desejar ser atendida por uma psicóloga com a justificativa de que “todos precisam de ajuda e que gostaria de ser ouvida”. Julia contou que se sentia mal com a cobrança das pessoas por um comportamento mais maduro nas condutas de sua filha, que por ser alta parecia ser mais velha. Segundo a mãe, a relação de Gabriela com as outras crianças é vista como confusa, “brinca e às vezes briga”.
A mãe destaca a tristeza da filha em não ser aceita pelas outras crianças. Além disso, conta sobre a decisão de vir até o Brasil como uma escolha difícil de ser tomada. Para ela, aqui, “se sentiria mais confortável em ser negra”. Questionada sobre o racismo presente no País, Julia disse que as violências não vinham de brasileiros, mas de outros imigrantes. Relatou que não se posicionava quando isso acontecia, pois sentia medo.
A produção de vários desenhos revela os incômodos presentes nas experiências emocionais da criança, como a recusa em se aceitar plenamente enquanto uma menina negra - Imagens cedidas pela pesquisadora
A pesquisadora analisa o caso afirmando a responsabilidade da criança nos conflitos internos em aceitar algo que, para sua mãe, não existe: as violências estruturais. “Percebe-se que é a figura humana, foco de suas reclamações, que vai sofrendo um processo de modificação durante o processo. É a menina quem está com a roupa errada no primeiro desenho, quem tem o cabelo errado e quem precisa diminuir de tamanho no segundo desenho”, conta. “Ao final de suas produções, tem-se no desenho a mesma paisagem do Brasil, uma figura humana com ‘cabelo pequeno’, com tom de pele mais claro, e a indicação do seu nome e idade, como se Gabriela pudesse se sentir/ver como uma criança pequena”, acrescenta ela.
A necessidade de pertencimento também aparece nos desenhos da criança. As referências à bandeira e costumes do seu país, Angola, são interpretadas como estratégias de estabilidade psíquica. Quando interrogada, Gabriela conta que “psicólogos cuidam das pessoas que não têm casa”. Inquieta na produção do desenho, verificou-se a incidência de sintomas de ansiedade, angústia e irritação. Segundo Gleise, os sentimentos de inadequação dirigidos à figura humana, ou seja, à sua própria figura, se mostram intensos.
Melancolia familiar – Andrew e seus pais, Mariela e Sid
A família, natural de Caracas, capital da Venezuela, justifica que a decisão de vir ao Brasil foi motivada por decisões políticas. Antes de chegarem a São Paulo moraram no Peru, onde relataram ter trabalhado em situação análoga à escravidão e sofrido xenofobia. Entristecidos, os pais de Andrew, Mariela e Sid, relataram à pesquisadora a apreensão contínua e desconforto em não dormir em paz na casa de acolhimento, com medo de os filhos serem vítimas de abuso sexual.
Em um dos encontros, descobriu-se que o pai tinha sintomas de depressão e ansiedade, ainda quando morava na Venezuela. Também foi constatado, a partir das entrevistas, que Mariela tinha sofrido violência doméstica durante a gestação em outro casamento. Andrew, o filho mais velho da família, foi identificado pela mãe como uma criança que possuía “atraso afetivo, e não de inteligência”. No caso, concluiu-se o desconforto acentuado dos pais em reconstruir suas vidas em um novo país. A criança é analisada como orientadora do processo de mudança.
Os desenhos muito elaborados e reflexivos são vistos como atraso emocional pela família. A presença da bandeira brasileira em um dos desenhos reflete a confluência dos símbolos identitários com a sua cultura de origem - Imagens cedidas pela pesquisadora
Segundo a pesquisadora, esse sentimento expressa a “carência do sujeito de seu quadro cultural de referência e, em função disso, não só sua identidade fica fragilizada, como também seu projeto de continuidade de si mesmo fica interrompido”, diz. “A escuta oferecida pode agir como elemento organizador que permite ao sujeito integrar aspectos dissociados de sua própria história, para que, assim, possa dar continuidade ao desenvolvimento de sua vida e do processo de adaptação ao país de destino”, explica Gleise, reforçando a importância da atuação psicológica nesse processo.
Acolhimento e integração
O estudo destaca o protagonismo das crianças no processo de acolhimento e integração das famílias, revelando a necessidade de processos de adaptação e inclusão nos ambientes, somados a políticas públicas transculturais em saúde coletiva que valorizem suas condições de vida para além da imigração. De acordo com Gleise, “acolher é um movimento de cuidado e aceitação. Quando saímos do estereótipo de considerar esses sujeitos apenas como estrangeiros que estão chegando ao Brasil, reconhecemos que são pessoas com uma história de vida prévia.”
Embora seja da essência da psicologia o ato de escutar, a pesquisadora reforça a importância da atuação de diferentes profissionais no processo de integração das famílias recém-acolhidas. “A boa psicologia compreende o sujeito de maneira global, não apenas as suas patologias. Se não, estaremos preocupados apenas em categorizar o sujeito dentro de um manual de doenças mentais, e não tratá-lo como pessoa, com emoções e trajetórias de vida em mudança,” diz. “Para isso, é primordial nos distanciarmos das divisões que nos separam e criarmos espaços que cruzem nossas culturas”, complementa a pesquisadora.
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Ela propõe que até as separações estruturais sejam rompidas. Segundo ela, é comum nos relatos as crianças enxergarem as mães como cuidadoras e os pais como ausentes em seus desenvolvimentos. “Isso é reflexo das estruturas. A organização da própria casa de acolhimento tem alojamentos para homens, para mulheres com filhos e para mulheres sem filhos. Logo, é nítido que essas crianças fiquem com suas mães e a transmissão afetiva seja quase que exclusiva dessas figuras femininas”, explica Gleise.
De acordo com a pesquisadora, erramos ao pensar que a imigração está acontecendo apenas agora. “O Brasil é formado pela migração! Nesse momento é que talvez a gente queira olhar para a questão de uma forma um pouco mais instrumentalizada e sensível”, lembra. Por isso, é tão necessária a garantia de direitos básicos no Brasil aos naturalizados ou estrangeiros.
Saiba mais: gleise.arias@usp.br
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