Para uma pessoa nascida no século 19 (e até um pouco depois), nosso mundo é uma ficção científica. Alguns serão mais precisos e usarão o termo distopia. Talvez estejam certos. As transformações tecnológicas ecoam e vão além da imaginação de escritores e roteiristas que fabularam o futuro. Podemos nos comunicar com alguém do outro lado do mundo instantaneamente, pesquisar sobre qualquer assunto em praticamente qualquer lugar, comprar um número sem fim de mercadorias e recebê-las em casa sem sequer conhecer seus vendedores. Evidentemente, todas essas mudanças se fizeram acompanhar nas esferas dos comportamentos, valores, sentimentos e relações.
Esses impactos das tecnologias na humanidade são o centro das atenções da nova edição – de número 110 – da revista Estudos Avançados, publicação do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. Sob o título Implicações Humanas das Tecnociências, o volume reúne sete artigos multidisciplinares que procuram organizar nossa perplexidade frente a uma era de mudanças vertiginosas e cada vez mais aceleradas. A revista está disponível na íntegra, gratuitamente, no portal Scielo Brasil.
Para Lucia Santaella, professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo – autora de um dos artigos publicados na revista -, cinco atributos definem o mundo contemporâneo, todos eles perpassados pelas tecnologias que nos cercam. Em primeiro lugar, o hibridismo, o estabelecimento de uma “cultura de todas as culturas”. Depois, o “emaranhado temporal”, em que simultaneidade e sincronicidade se misturam ao passado no presente, a um presente de muitos passados e a futuros antecipados por simulações computacionais.
Em seguida, a pesquisadora nota uma interatividade onipresente, não apenas entre pessoas, mas com outros seres vivos e coisas, o que nos coloca uma nova ideia do que é ser humano. O quarto atributo seria a aceleração, uma mudança no ritmo das próprias mudanças no mundo, algo que se intensificou após a Segunda Guerra mundial (1939-1945). Por fim, Santaella aponta para um estilhaçamento discursivo, atrelado à pulverização das representações sobre o mundo, à força de variadas formas de ativismo e ao estabelecimento das guerras culturais.
“As consequências políticas, culturais e psíquicas dessas disrupções são muitíssimas e profundas. Entre elas assistimos à fragmentação e dispersão dos antigos conceitos de povo, populismo, público, espaço público, debate público etc.”, escreve a professora. “Democracia é um valor ético, um princípio jurídico e um ideal coletivo inquestionável. Mas o modo como ela opera não pode ser pensado nos moldes em que operava no mundo pré-digital. Exemplo disso encontra-se no susto internacional de 2016 e nacional de 2018.”
Santaella refere-se, evidentemente, às eleições de Donald Trump e Jair Bolsonaro, que mobilizaram as mídias sociais como jamais foi visto, exigindo toda uma reorientação do jogo eleitoral e democrático. Mas, além da política, o domínio econômico também se transformou com a constelação de serviços digitais postos à disposição tanto de produtores quanto de consumidores, como indicam, em outro artigo da revista, Abel Reis, doutorando em Filosofia pela PUC-SP, e Silvia Piva, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo e da PUC-SP.
Os autores falam em capitalismo de dados e sugerem que, após a substituição do capitalismo produtivo, centrado na criação de mercadorias, pelo capitalismo financeiro, dominado pelos bancos e mercados de ações, outra dinâmica vem se estabelecendo. O que importa agora é a produção de dados e o domínio de processos e tecnologias que os controlem. É o “capitalismo dos intangíveis”, cuja lógica se dá pela financeirização da economia mundial, o caráter abstrato que o trabalho e o consumo ganham a partir das bases técnicas digitais, a transformação do intelecto em força de trabalho e o surgimento de “prosumidores”, que criam e consomem subjetividades, fornecendo dados para sistemas de marketing e plataformas digitais.
Para Reis e Silvia, esses elementos integram um processo de mercantilização das subjetividades, atrelado a uma forma nova de economia que vai além do consumo de mercadorias, mas encontra seu poder na comercialização de experiências. “A mobilização de aspirações, frustrações, crenças, preferências e outros traços da psicologia dos consumidores é o que está no cerne da economia da experiência. Todos esses aspectos da subjetividade humana que forjam o núcleo narrativo dos indivíduos e lhes dá unicidade e sentido são convocados e articulados de modo a criar valor econômico”, escrevem os autores.
E também instrumentalizados para o que Reis e Silvia chamam de guerras estéticas, a luta pelas percepções, opiniões e sensibilidades, com o objetivo de capturar ou estremecer o conhecimento que as próprias sociedades têm de si mesmas. Nesses conflitos, o interesse não está na captura de territórios geográficos e no controle físico das populações. Tampouco seus armamentos são bombas, aviões e rifles. Como artefatos bélicos, mídias sociais tais quais o X, o Facebook e o Telegram, que disparam campanhas publicitárias e de comunicação tendo como alvo as preferências dos usuários. A guerra em torno do Projeto de Lei no 2.630, de 2020, a Lei das Fake News, é um de seus exemplos mais transparentes.
Segundo Eder Van Pelt, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), em outro artigo da revista, esse é um cenário que coloca em risco a própria democracia, graças ao avanço do que reconhece como tecnototalitarismo. Há uma ameaça real, afirma, à legitimidade do exercício do poder político e econômico, dado que as novas tecnologias são mobilizadas como instrumento de controle dos indivíduos sem que estes possam democraticamente opinar e intervir.
Sistemas tecnológicos e poderes político e econômico estabelecem uma aliança que pode levar a uma nova forma de totalitarismo. Na tecnocracia digital, o domínio não está mais nos corpos, no direito de ir e vir, na submissão externa dos sujeitos, mas em suas subjetividades. “Esse novo controle sobre os sujeitos consegue condicionar os instintos, os desejos e as vontades e conduzir a nossa consciência e formas de liberdade para as finalidades de quem está por trás dessas tecnologias”, escreve Van Pelt. “Sua eficiência decorre do fato de que ele não se volta diretamente para o controle corporal e material, como nas ações da força policial e militar dos Estados. Especificamente, ela consegue se impor por meio do controle das mentes.”
O autor observa com preocupação um processo de alienação causado pela tecnologia, que pode levar à servidão digital. Uma dinâmica potencializada pela falta de mecanismos de controle e limitação da digitalização da vida, que contribui para a perda da condição humana de sujeito e da atuação enquanto sujeitos políticos. “Uma vez que damos espaço ilimitado à tecnocracia, ao conhecimento técnico-científico sem comprometimento com os parâmetros democráticos, acabamos nos afastando de possibilidades de ações conscientes e críticas e caindo em processos alienantes que minam nossas capacidades de autonomia e exercício genuíno de nossas liberdades.”
“No âmbito mais social, o processo de digitalização da vida vem deslocando o sentido da realidade para dentro do mundo digital. As redes sociais passaram a constituir-se na nova arena da política, com sua cultura de ‘curtidas’ e de redução da criticidade da esfera pública, agora recheada de fake news e discursos empobrecidos de conteúdo. Isso esvazia a política fora do mundo digital, com o crescimento da apatia à realidade dada a centralidade do mundo digital, que facilita o avanço do tecnototalitarismo sobre nossas vidas”, escreve Van Pelt, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Se as transformações são globais, seus impactos não deixam de ter cores locais, como mostra o artigo dos professores da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Bruno Pompeu e Eneus Trindade, escrito em parceria com Silvio Koiti Sato, professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) de São Paulo. O trio analisa as relações entre consumo, cidadania e publicidade na era dos algoritmos e do big data.
Audiência e exploração dos dados dos usuários são os alicerces da propaganda digital. A publicidade é segmentada e direcionada a partir de interesses e perfis. Se, por um lado, as pessoas recebem anúncios de produtos que potencialmente lhes interessam, não se perde de vista os sinais de perseguição e vigilância que tais dinâmicas impõem. Quem já não se surpreendeu ao encontrar uma propaganda a respeito de um assunto comentado minutos antes em uma conversa particular?
“Esse cenário exemplifica uma visibilidade panóptica, na qual a maioria é observada por uma minoria, com evidentes relações assimétricas de poder e possibilidades, tanto de monitoramento do comportamento quanto de alteração deles”, escrevem os autores. A atividade dos algoritmos não só possibilita as ações das empresas, mas condiciona comportamentos lidos como padrões de consumo. “Isso instiga os indivíduos à repetição de cliques, visualizações e, sobretudo, a ações repetidas de compra, em fluxo constante.”
Processo que é alimentado, frisam os autores, por uma narrativa dominante que instiga o consumo e abraça de maneira irrestrita a tecnologia, deixando de lado as contradições atreladas ao seu uso. Controle e caos, integração e isolamento, liberdade e escravidão – dinâmicas constitutivas do atual momento tecnocientífico em que vivemos – são ignoradas em favor de um idílio tecnológico. “Nessa vida smart, algorítmica, os paradoxos do consumo tecnológico são suavizados, apresentando as novidades de forma sedutora e emoldurada”, pontua o trio.
Estudos literários
O número 110 da Estudos Avançados traz ainda uma série de artigos dedicados à crítica literária. Dentre eles, há uma discussão sobre a mudança de posicionamento de Euclides da Cunha – ocorrida entre a publicação de seus textos no jornal O Estado de S. Paulo e a escrita de Os Sertões – diante do significado da revolta de Canudos. Também aparece um ensaio a respeito de Os Óculos de Pedro Antão, conto de Machado de Assis no qual o autor teria realizado uma paródia e desconstrução do romance policial, em diálogo com Edgar Allan Poe.
Outra contribuição apresenta a edição de um poema inédito de Domingos Caldas Barbosa, autor árcade luso-brasileiro pouco lembrado e em processo recente de revalorização, encontrado no acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP. Há ainda um artigo que faz sobrevoo pela poesia em língua francesa de Sérgio Milliet, sua incursão inicial na atividade literária. Outro texto analisa ainda a produção teatral de um grupo vinculado ao jesuíta Manoel da Nóbrega na Bahia colonial, entre 1551 e 1552.
Dois artigos da revista colocam em relevo a pauta feminista. O primeiro propõe uma reflexão sobre sofrimento e resistência, reunindo memórias e histórias de vida de uma participante da Marcha Mundial das Mulheres, movimento social feminista, antirracista e anticapitalista. Já o segundo debate o surgimento da imprensa feminina e analisa textos do periódico O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, publicação literária e noticiosa editada entre 1889 e 1890 na capital da então recém-nascida República.
Completam a edição textos sobre o legado dos professores franceses na formação do curso de História da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP – a famosa Missão Francesa –, a contribuição brasileira para as discussões sobre o Pleistoceno Médio – período situado entre 780 e 130 mil anos atrás, no qual surgiu o Homo sapiens – e uma seção de resenhas.
Revista Estudos Avançados, número 110, publicação do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, 348 páginas.
A revista está disponível na íntegra, gratuitamente, no portal Scielo Brasil.