No dia 16 de junho, o Centro Universitário Maria Antonia (Ceuma) da USP recebeu mais um convidado para dar continuidade à série de palestras Ensaios Abertos, que têm como objetivo discutir grandes temas das humanidades. Desta vez, quem teve a palavra foi John Milton, professor do Departamento de Letras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que proferiu a palestra “Shakespeare, um clássico entre nós”, cujo tema central foi a peça Otelo, o Mouro de Veneza, de William Shakespeare, e suas adaptações.
Focando em cinco adaptações, Milton analisou-as de maneira a discutir quais temas e aspectos da peça original – como a presença do lenço que causa toda a intriga da peça – foram mantidos e como foram adaptadas as diversas mudanças de contexto. Otelo, o Mouro de Veneza (Othello, the Moor of Venice) foi escrita em 1603. A trama da peça gira em torno de quatro personagens principais: Otelo (um mouro que serve Veneza como general), Desdêmona (a esposa de Otelo), Iago e Cássio (intermediário entre a relação de Desdêmona e Otelo e grande amigo deste). A história começa a se desenrolar quando o general promove Cássio ao posto de tenente, o que deixa Iago profundamente ultrajado e enciumado. Como vingança, ele arquiteta um plano para jogar o general contra seu amigo, fazendo Otelo pensar que sua esposa estava a ter um caso com Cássio.
Por tratar de temas universais e cotidianos – ciúmes, traição, amor e racismo – e despertar “emoções com as quais lidamos todos os dias”, como afirmou Milton, a peça continua atual, o que permite que tenha sido adaptada várias vezes ao longo dos anos. Segundo o professor, o clássico de Shakespeare possui adaptações nas mais diversas plataformas, além do teatro: filmes, histórias em quadrinhos, mangás, óperas, livros infantis, videogames e até peças de balé. Sobre a importância das adaptações em geral, Milton lembrou: “O primeiro livro que vocês leram era, provavelmente, uma adaptação”.
Ao longo da palestra, John Milton analisou cinco adaptações de Otelo, mostrando trechos e trailers de filmes e peças. A primeira foi o filme Otelo (1995), de Oliver Parker. Segundo o palestrante, trata-se de “uma versão bem próxima do original”, mas com uma grande diferença: a idade das personagens. No livro, especula-se que Otelo tenha, no mínimo, 40 anos. “No filme, Laurence Fishburne (ator que interpreta o protagonista) deve ter por volta de uns 30 anos. Na verdade, eu sempre pensei no Morgan Freeman como Otelo, por conta da idade.” No original, além disso, Desdêmona tem apenas 16 anos, o que não acontece no filme e em nenhuma outra das adaptações.
Em seguida, foi analisado o filme bollywoodiano Omkara. Nesse caso, temos um contexto completamente alterado, apesar de se manter relativamente fiel à trama shakespeariana. O filme se passa em uma Índia contemporânea, com a presença de gângsteres, e os nomes das personagens são adaptados para a língua hindu. Como todo filme de Bollywood, “contém muitas cenas de dança coreografadas e canções, assim como as peças de Shakespeare”, disse Milton. Apesar de algumas mudanças na trama – como o fato de a personagem equivalente à Bianca do original matar Iago –, a adaptação tem a presença de importantes momentos e elementos-chave da peça, como: a cena do confronto de Otelo e Brabâncio, o ciúme, a traição, a pureza de Desdemôna, a linguagem pesada e a posição de Otelo como uma pessoa “de fora” e de classe inferior (no filme, ele é de uma casta inferior à de Desdêmona).
A terceira adaptação apresentada foi o filme O (no Brasil, Jogo de Intriga). Lançado em 2001, o filme faz uma releitura da peça Otelo ambientado em uma escola de ensino médio dos Estados Unidos. Novamente, os nomes e as idades são alterados. Os elementos principais são mantidos – traição, amor, ciúmes e a pureza da protagonista – e até algumas cenas clássicas da peça se mantiveram, como a de Cássio embebedado.
Depois, foi apresentada a adaptação Otelo da Mangueira, uma peça musical de Gustavo Gasparini. Contextualizado no Rio de Janeiro dos anos 40, o musical traça um paralelo com a batalha de Chipre do original shakespeariano, que, aqui, aparece como a disputa pelo samba enredo escolhido para representar a escola de samba Mangueira. Com temas e personagens semelhantes aos de Otelo, nesse caso a diferença de idade entre o casal está presente (apesar de não ser tão drástica como na peça original), assim como a diferença de classe social. No entanto, a protagonista não aparece com um “forasteiro”, alguém de fora. “Nessa peça, o personagem que interpreta o equivalente de Otelo já faz parte da escola de samba, já está integrado.”
Por fim, a peça Desdemona, a play about a handkerchief (Desdêmona, uma peça sobre um lenço) também foi tema de análise. John Milton pontuou que essa adaptação é “completamente diferente das demais”. Ela possui apenas três personagens principais, com os nomes da peça original: Desdêmona, Bianca e Emilia. Na história, Desdêmona está cansada e enjoada de seu marido Otelo e é amiga próxima de Bianca, inclusive substituindo-a às terças-feiras no bordel em que a amiga trabalha. Diferentemente do enredo original, nesse caso a protagonista trai abertamente Otelo, inclusive com Iago. Desdêmona tem relações com todos, menos com Cássio, o que mantém certa relação com a dúvida por trás do original. Com a ausência dos “momentos-chave” apontados por Milton nas análises das demais adaptações, aqui os pontos em comum com Otelo, o Mouro de Veneza são os ciúmes do protagonista e alguns diálogos. A pureza de Desdêmona não existe nessa releitura. A peça não tem a aparição de nenhum personagem masculino, a não ser por citação e, segundo Milton, possui o tom de um certo “proto-feminismo”, que também se faz presente em outras adaptações, como no filme O.