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Para o jornalista e pintor gaúcho Enio Squeff, a parte mais desafiadora da produção de uma obra de arte é como começá-la. “Uma boa pintura começa com um bom desenho. Sem isso, não funciona. Se perde tudo”, diz o artista. Mas, para quem já expôs seus trabalhos em Portugal, Cuba, Alemanha e Colômbia, isso não parece ser um problema. Em sua obra O Triunfo de Dom Quixote, os traços de Squeff dão forma a 33 das mais de 200 personagens do clássico de Miguel de Cervantes, que agora se encontram na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, instalada no campus da Universidade na zona leste de São Paulo.
A pintura foi doada pelo artista após a aprovação do Conselho Técnico Administrativo da EACH. “Squeff é um artista muito conhecido no cenário paulistano e nós procuramos trazer a contribuição dele para a nossa escola, que, dentre suas muitas atuações, é uma escola de artes”, conta o professor Ricardo Uvinha, que presidiu a comissão entre 2014 e 2015, período em que a doação começou a tramitar na USP.
No final de abril, a obra foi entronizada na biblioteca da EACH. “Todos nós nos sentimos privilegiados por ter uma obra de arte tão significativa dentro das nossas instalações. Sem dúvida, é um símbolo importante para a escola”, afirma Maria Cristina Motta de Toledo, diretora da unidade.
O Triunfo de Dom Quixote
Eleita por especialistas como a melhor obra da literatura ocidental, Dom Quixote carrega em si a essência de um período de ruptura na história da arte, que, aos olhos de Squeff, tem muito em comum com as crises dos dias atuais.
“Estamos vivendo um neomaneirismo”, interpreta o artista. “A crise que nós vivemos hoje é um desdobramento da perda de hegemonia da cultura de massas, daquilo que Adorno chamou de indústria cultural”, afirma, referindo-se ao movimento maneirista, do qual Dom Quixote faz parte.
O movimento surgiu com a perda da hegemonia da Igreja Católica diante do surgimento do protestantismo. Com a influência religiosa abalada, os artistas trataram de produzir obras disruptivas, com narrativas complexas e contraditórias, como Dom Quixote.
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O óleo sobre tela O Triunfo de Dom Quixote procura retratar algumas dessas características em seus 12 metros quadrados. Ao centro da tela, montado em Rocinante, Dom Quixote é exaltado por personagens do livro, personalidades históricas e até mesmo pelo próprio pintor, que se desenhou no canto esquerdo do quadro.
“O Triunfo de Dom Quixote é uma ironia. Aliás, quem é que triunfa? Não há vitória. Não existe nada que possa dizer que uma pessoa seja vitoriosa”, argumenta Squeff. “A única personagem que morre em Dom Quixote é o próprio personagem. Ele é um homem, apenas um mortal.”
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Raparigas, mouros, curas e condes compartilham o mesmo espaço numa forma de representar a natureza compósita da obra de Cervantes. Dulcineia, amada de Dom Quixote, aparece em uma cabana ao lado de uma fogueira, a mesma feita pelo cura (primeiro personagem à esquerda) para queimar os livros que enlouqueceram o protagonista. Também à esquerda, uma criatura com chifres representa um menino que se fantasiou para assustar Dom Quixote e Sancho Pança, que está à direita.
Como a obra literária, a metalinguagem é um elemento fundamental da pintura. À esquerda, nos morros, há um templo grego que representa o Classicismo, movimento que vai de encontro a Dom Quixote. Abaixo, Squeff se pintou pintando. “Há todo um mundo em Dom Quixote que eu pensei em expressar aqui nessa pintura. Com essas cores, com essa brincadeira de figuras e de me pôr inclusive como pintor da própria pintura. Por ser uma pintura toda metalinguística, tive que me colocar dentro dela.”
À direita, segurando um livro, Miguel de Cervantes observa o triunfo de seu maior personagem, enquanto acima, Borba Gato, bandeirante que nem havia nascido na época, faz o mesmo. A referência é uma homenagem ao artista Julio Guerra, que esculpiu a estátua do bandeirante localizada em Santo Amaro, onde a pintura foi feita.
O Triunfo de Dom Quixote foi produzido a pedido do Sesc Santo Amaro, em comemoração aos 400 anos da obra original, completados em 2005. Mais tarde, ela ficou em exposição no Hospital Premier, e agora ficará permanentemente na EACH.
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De Saulo de Tarso a São Paulo
Além de O Triunfo de Dom Quixote, a EACH receberá o painel De Saulo de Tarso a São Paulo, também feito por Enio Squeff. A obra possui 118 metros quadrados e o local onde será instalada ainda está sendo estudado. Ela foi produzida a pedido do Sesc Itaquera e possui a marca dos moradores da zona leste, que tiveram as costas pintadas no painel e ajudaram a ilustrar a história da cidade de São Paulo.