
Esqueça o Rio de Janeiro das balas traçantes, da insegurança, dos governadores presos, do Maracanã invadido por hordas bárbaras. Se for possível – e sempre é, quando se quer –, vamos abstrair a cidade real, atual, e vamos olhar pelo retrovisor e admirar a cidade que o Rio de Janeiro já foi, lá entre os anos 1940 e 1950. E esse Rio icônico, malemolente, alegre, criativo até não poder mais tinha uma capital, uma sede, informal: Copacabana, a “princesinha do mar”, idílica e síntese de um Brasil que queria ser grande, sim, mas também e principalmente feliz quando crescesse. E essa capital cultural e social do Rio e do Brasil também tinha seu hino, o chamado samba-canção, que tanto sucesso fez em vozes como Dolores Duran, Maysa, Nora Ney, Angela Maria, Nelson Gonçalves, Marisa Gata Mansa e tantos outros e outras de timbre aveludado e uma pontada no peito.
Essa porção de areia e mar compreendida entre o morro do Leme e o Posto 6 (lá para os lados do Forte de Copacabana) e sua música-síntese acabam de ganhar uma biografia definitiva, apropriadamente intitulada Copacabana – A Trajetória do Samba-Canção (1929-1958), de autoria de Zuza Homem de Mello. Publicado pela Editora 34 e pelas Edições Sesc, o volume não poderia ter encontrado autor melhor: jornalista, musicólogo, produtor e historiador, aos 84 anos Zuza é o maior especialista em música popular brasileira e em música brasileira popular – coisas distintas, note-se –, com obras fundamentais sobre o tema.

Também produtor e apresentador do programa Playlist do Zuza, na Rádio USP, Zuza Homem de Mello constrói, ao longo das mais de 500 páginas de seu trabalho, uma história viva de Copacabana e de suas transformações sociais e culturais. Desde os tempos em que a praia era um lugar ermo lá para os lados da zona sul carioca, quase inacessível – só foi ficar mais fácil chegar lá com a construção de um túnel em 1906, ligando Botafogo ao novo bairro – até passar a ser o local de charme e encontros, do banho de mar, da elegância do Copacabana Palace, das boates – como o Little Club, no também icônico Beco das Garrafas – e, obviamente, da música.
E é justamente nela que Zuza concentra todo seu talento e conhecimento. E não é para menos. O livro levou 13 anos para ser concluído, isso devido a uma pesquisa aprofundada do autor, que olha os pormenores históricos com lente de aumento – e conta suas histórias como quem conversa com um amigo. E haja história. Em seu trabalho, Zuza traça uma linha do tempo que faz o samba-canção remontar aos anos 1920 e 1930, desde a voz anasalada de Noel Rosa e as estripulias do teatro de revista até ganhar forma, força, melodia e voz em finais da década de 1940 e começo da de 1950. É nesse período de tempo que o samba-canção ganha tônus musical e relevância. E autores definitivos, como a já citada Dolores Duran e Antonio Maria, entre outros – até um jovem Tom Jobim pré-Chega de saudade.

Talvez muitos pensem que o samba-canção é a música apaixonada e amorosa por natureza. Engano. É exatamente o contrário. Antes do amor, afirma Zuza, ela é a música do antiamor, do amor que poderia ter sido e não foi. Se não, o que dizer de temas como Ninguém me ama (Dolores Duran) e Meu mundo caiu (Maysa)? Tente ouvir essas músicas a seco. Mas ela não era só música de deprimidos com o amor – também houve espaços para o romantismo, e a melhor prova disso é A noite do meu bem, da onipresente Dolores Duran (e de vida curta e intensa: a cantora e compositora morreu aos 29 anos, de um infarto fulminante). “A noite do meu bem é possivelmente o mais romântico, o mais elevado entre os sambas-canção gravados nos treze anos de esplendor do gênero, quando o tema da relação amorosa é quase focado no seu momento mais doloroso, o da separação”, escreve Zuza.

É importante notar que o samba-canção foi, no seu auge, a música das cantoras, e não necessariamente dos cantores – uma certa novidade para a época. “O samba-canção propiciou efetivamente às damas e às divas a possibilidade da liderança na venda de discos, empatando ou até superando a supremacia dos cantores, que por anos exerceram franco domínio e a quem eram oferecidas invariavelmente em primeira-mão tudo que produziam os compositores”, conta o autor. “Igualmente, damas e divas avocaram para si a missão da criação musical. Através de seus versos e melodias arcaram com a posição de fazer valer sua palavra, deixando clara sua igualdade no talento e acrescentando um aprofundamento especial ao encarar os temas amorosos.”

A trajetória do samba-canção vai embocar em outro estilo fundamental da MPB, aquele que talvez seja o mais conhecido mundo afora – a bossa nova. De acordo com o trabalho de Zuza, a bossa não seria possível sem aquela música de transição e de raiz – como ele a chama – que foi o samba-canção. “É pois inevitável concluir que o samba-canção não é bolero, nem simplesmente uma música de fossa, nem de dor de cotovelo. É um gênero essencialmente brasileiro, é a plataforma da modernidade da nossa música”, esclarece Zuza. E essa modernidade à qual ele se refere era justamente a bossa nova. Aí não mais a tristeza do amor encerrado, mas a alegria do barquinho, do mar, do sol, do sal, do sul. Em vez de mundos cadentes, um basta nas saudades – e beijinhos sem ter fim. A bossa nova era a grande novidade. Tom Jobim notou logo isso, como conta Zuza. E aí, na Rua Nascimento Silva, 107 – aí já em Ipanema, não mais em Copacabana, o que é mais do que uma mera questão geográfica – começam a ser engendrados os acordes e as letras da nova bossa, da grande novidade musical brasileira. Que só foram possíveis graças à Copacabana e seu hino informal, que fazia sofrer um pouco, mas que deu ao Brasil “o reconhecimento de sua canção como destacada forma de arte na gênese da música popular”.
Copacabana – A Trajetória do Samba-Canção (1929-1958), de Zuza Homem de Mello. Editora 34/Edições Sesc, 512 págs.