A escritora paulista Ruth Guimarães (1920-2014) – Foto: Joaquim Maria Botelho
Com mais de 50 obras, entre contos, crônicas, livros infantis, poemas e traduções, Ruth Guimarães (1920-2014) dedicou sua vida às letras. Integrante da Academia Paulista de Letras (APL), ela é autora do romance Água Funda, uma original reconstituição etnográfica da linguagem caipira, que a projetou nacionalmente e também foi a porta de entrada – não precisou prestar o exame vestibular – para o curso de Letras da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP, localizada na rua Maria Antonia, região central da capital paulista. O livro, seu único romance, foi publicado pela primeira vez em 1946 e relançado em 2018 pela Editora 34, com prefácio do crítico literário Antonio Candido (1918-2017) e apresentação do sociólogo e professor da USP José de Souza Martins. Em novembro de 2019, às vésperas da comemoração do centenário de Ruth – completado no dia 13 passado -, a chácara da família em Cachoeira Paulista, no interior de São Paulo, se transformou no Instituto Ruth Guimarães, para preservação de sua memória. Ainda neste ano serão lançados dois títulos inéditos da escritora pela Faro Editorial, Contos Negros e Contos Indígenas. Outros dois virão a público em 2021: Contos de Céu e Terra e Contos de Encantamento.
Nascida em 13 de junho de 1920, em Cachoeira Paulista, Ruth passou parte da infância, dos 4 aos 9 anos, em uma fazenda que seu pai administrava, no sul de Minas Gerais. “Foi lá que, ainda criança – aos 5 anos já lia jornais –, recolheu histórias dos peões, caipiras, iletrados e toda gente simples que conheceu, mas de excepcional domínio da sabedoria popular, que marcaria sua obra”, conta o jornalista e escritor Joaquim Maria Botelho, filho de Ruth Guimarães. Ruth perdeu os pais ainda jovem e foi criada pelos avós, mantendo um forte vínculo com a avó materna, filha de escravos e analfabeta. O marido, José Botelho Neto, ela conheceu “no berço”, como o casal gostava de contar aos amigos. Seis meses mais velha que ele, foram colocados lado a lado ainda bebês, e depois fizeram uma parceria para a vida toda. Eram primos, ele fotógrafo e ela uma poetisa, cronista, romancista, contista e tradutora.
Em 2008, aos 88 anos, ao receber o diploma de membro da Academia Paulista de Letras (APL) – Foto: José Botelho Neto
Aos 17 anos, Ruth resolveu ir para a cidade de São Paulo. Trabalhou na indústria farmacêutica, fez carreira no Laboratório Torres e passou a frequentar as reuniões que aconteciam no porão da Drogaria Baruel, que ficava na esquina da rua Direita com a Praça da Sé. Seu dono era o farmacêutico e também escritor Amadeu de Queiroz, ou “o velho Amadeu”, como ela o chamava. Como relata Botelho, Ruth conviveu com escritores como Menotti Del Picchia, Jorge e James Amado, Péricles Eugênio da Silva Ramos e Edgard Cavalheiro. “Um dia, o velho Amadeu lançou um desafio: ‘Vocês, jovens, falam muito sobre os autores europeus, mas não escrevem’. Mas ela tinha um romance pronto”, conta Botelho. E continua: “Ela foi então para casa refinar um pouco o texto e três dias depois levou o manuscrito para o velho Amadeu, que ficou muito entusiasmado com o trabalho, encaminhando então para Edgard Cavalheiro e Cid Franco, ambos da Editora Revista do Globo”. Era o romance Água Funda.
Ruth Guimarães com a atriz Ruth de Souza, sua amiga, em 1943 – Foto: José Botelho Neto
Com a escritora Lygia Fagundes Telles em 1950 – Foto: José Botelho Neto
Com o escritor Cyro dos Anjos em 1951 – Foto: José Botelho Neto
Com o escritor Amadeu de Queiroz em 1949 – Foto: José Botelho Neto
Com o escritor Fernando Góes em 1974 – Foto: José Botelho Neto
Ruth Guimarães ao lado do crítico literário Antonio Candido em 2006, durante lançamento do seu último livro, Calidoscópio – A Saga de Pedro Malazartes, em 2006 – Foto: Júnia Guimarães Botelho
Ainda em processo de publicação, que na época era muito demorado, Ruth foi incentivada a procurar Mário de Andrade em busca de uma metodologia e embasamento para sua pesquisa que se tornaria mais tarde o livro Filhos do Medo (1950). “Ela foi bater na Rua Lopes Chaves, 546, e foi muito bem recebida por Mário de Andrade, que deu orientações por alguns anos sobre pesquisa popular, técnicas de coleta e referências de fontes bibliográficas”, conta Botelho. O livro trazia histórias assustadoras, também recolhidas em sua infância, que logo se tornaram sucesso entre os folcloristas. Por causa dele, foi convidada a ministrar uma palestra no 1º Congresso do Folclore Brasileiro, onde conheceu e se tornou amiga do folclorista e historiador e Luís da Câmara Cascudo (1898-1986).
Antes da publicação de Filhos do Medo, saiu seu primeiro romance, Água Funda. “Mário de Andrade não chegou a ver o lançamento, que aconteceu em São Paulo, como a minha mãe gostava de lembrar”, comenta Botelho. “Foi em abril de 1946, num evento conjunto para o lançamento de três livros. Além de Água Funda, foram lançados, no mesmo dia, Sagarana, de Guimarães Rosa, e Praia Viva, de Lygia Fagundes Telles”. O livro foi um grande sucesso, como lembra Botelho. Na época, informa, Antonio Candido publicou duas folhas de críticas favoráveis no Correio Paulistano, e foi a partir daí que se tornaram amigos para a vida toda. Como ressalta o professor José de Souza Martins na apresentação da nova edição, “Ruth Guimarães é, na verdade, a precursora do realismo fantástico na história da literatura latino-americana, cuja obra mais conhecida é Cem Anos de Solidão, do colombiano Gabriel Garcia Marques, Prêmio Nobel de Literatura”.
Ruth e sua máquina de escrever em 1963 – Foto: José Botelho Neto
Ruth Guimarães e o filho Joaquim Maria Botelho, em 2013 – Foto: Olavo Guimarães
Ruth Guimarães em 1944 – Foto: José Botelho Neto
Ruth e o filho Joaquim Botelho em 1999 – Foto: Júnia Guimarães Botelho
Uma pausa para a família
Depois de todo o sucesso com Água Funda e Filhos do Medo, Ruth Guimarães precisou dar um tempo nas letras. Ou mais ou menos. Casada com um primo de primeiro grau, tiveram nove filhos. Três deles nasceram com a síndrome de Alport, uma doença genética que provoca a perda progressiva da função renal e auditiva e também pode comprometer a visão. Por conta disso, os médicos recomendavam que morassem em lugares quentes. Eles se mudaram então para Cachoeira Paulista. “Ela prestou concurso e fez carreira como professora em Cachoeira Paulista, mas meu pai ficou tuberculoso, e ela precisou desaparecer do circuito literário”, explica Guimarães, que ainda era pequeno mas ainda assim lembra que foi um período bem difícil para sua mãe. “Ela dava aulas e ainda fazia trabalhos de tradução para a Editora Cultrix, principalmente do francês, sendo a responsável pela popularização de Dostoiévski no Brasil”, completa.
Além de introduzir Dostoiévski na literatura brasileira, enquanto cuidava da família Ruth traduziu direto do latim a obra do escritor Apuleio, que tinha como título original Metamorfoses e que constitui o único testemunho do romance antigo. A obra, que recebeu o título em português de O Asno de Ouro, foi relançada no ano passado pela Editora 34, com grande sucesso já que em apenas três meses quase se esgotaram os 2 mil exemplares. Há depoimentos, pertencentes a Botelho, de professores da Universidade de Coimbra elogiando a tradução feita por sua mãe em 1963.
Passado algum tempo, com a melhora do marido, Ruth ficava durante a semana em São Paulo e voltava nos finais de semana para Cachoeira Paulista. Nesse período ela “retomou as letras”, como diz Botelho. Além de prosseguir as pesquisas folclóricas, começou a recolher e recontar histórias populares, transformando-as em livros infantis, como Histórias de Onça, Histórias do Jabuti e Lendas e Fábulas do Brasil, todos publicados originalmente pela Cultrix. Com a demanda de trabalho aumentando, a família mudou para Suzano, na Grande São Paulo, onde moravam os avós paternos, que ajudaram a cuidar dos netos. Nessa época, Ruth recebeu a encomenda do Dicionário da Mitologia Grega. Seu “assistente” era o filho Joaquim Maria Botelho, então com 10 anos, que chegava da escola e era responsável por ler os livros mais simples e escolher personagens que descobria, escrevendo uma breve biografia de cada um. “Assim eu aprendi muito sobre mitologia grega”, diverte-se Botelho.
Capas de livros publicados por Ruth Guimarães – Fotos: Reprodução
Foram 35 anos no magistério, muitos livros e traduções, idas e vindas de Cachoeira Paulista até Suzano para cuidar da família. Ainda assim sobrava energia. Como dormia pouco e tinha uma pilha de livros ao lado da cama, lia todas as noites, inclusive muitos manuscritos que recebia, já que seu nome circulava no meio acadêmico. Um desses manuscritos era Avalovara, de Osman Lins. Em 1974, chegou a ser consultada por Fernando Góes, membro da Academia Paulista de Letras (APL), grande amigo dela e padrinho de Botelho, para uma possível candidatura, mas, sem tempo, não aceitou. Só em 2008, já aos 88 anos de idade, por indicação de Lygia Fagundes Telles, tornou-se membro da APL. Seu último trabalho foi Calidoscópio – A Saga de Pedro Malazarte, uma longa pesquisa com cerca de 300 histórias sobre esse ardiloso personagem brasileiro. Ruth morreu em 21 de maio de 2014, prestes a completar 94 anos.
Para Botelho, embora pouco conhecida, a obra-prima de sua mãe é Contos de Cidadezinha (1996), em que ela se pergunta: “Escrevo para quê, afinal? Para obter honra e glória? Para poder dizer tudo o que penso? Para me aproximar do meu semelhante? Para tentar derrubar o muro que separa um ser de outro ser? Para apreender o sortilégio da vida, que de outro modo não alcanço? Para justificar essa minha existência? Então será para mim mesma que escrevo? Ah! Eu conto histórias para quem nada exige, e para quem nada tem. Para aqueles que conheço: os ingênuos, os pobres, os ignaros, sem erudição nem filosofias. Sou um deles. Participo do seu mistério. Essa é a única humanidade disponível para mim. Quem me dera escrevesse com suficiente profundeza, mas claramente e simplesmente, para ser entendida pelos simples e ser o porta-voz dos seus anseios”.