Livro de professores da USP descomplica a filosofia da ciência

Com linguagem acessível, obra é introdução ao tema que defende a importância e validade da ciência

 06/09/2023 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 20/09/2023 às 14:41
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O livro dos professores Walter Terra e Ricardo Terra – Fotomontagem: Jornal da USP – Foto: Reprodução/Editora contexto

 

A proposta de Filosofia da Ciência, livro de Walter Ribeiro Terra, professor do Instituto de Química (IQ) da USP, e de Ricardo Ribeiro Terra, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, é ser um guia acessível para cursos e disciplinas das várias áreas do conhecimento. Escrita direta, exemplos, sugestões de leituras, glossário e questões para discussão são os instrumentos mobilizados pelos autores ao longo do volume para apresentar aos leitores a história, a metodologia, as bases cognitivas e as bases institucionais da ciência. O resultado é uma empenhada defesa da ciência em texto fluido e exposição clara, quase um exercício metalinguístico de como o fazer científico deve ser.

Algumas questões-chave motivam a obra e vão sendo respondidas durante a leitura. Qual é a origem e o objetivo da ciência? Como os argumentos científicos são organizados e como sua confiabilidade é assegurada? O que é pseudociência, má ciência e ciência fraudulenta? Por que as explicações da ciência frequentemente não são intuitivas? Como a ciência é produzida, como é financiada e qual sua relação com a sociedade?

As respostas a essas perguntas surgem agrupadas em quatro seções. Na primeira, “Aspectos históricos da ciência e da filosofia da ciência”, os autores começam situando a ciência no quadro dos conhecimentos cultos e seguem narrando as origens da ciência moderna dentro do processo que ficou conhecido como revolução científica, ocorrido entre os séculos 16 e 18. Passam pelo papel das universidades, de Galileu Galilei e de Isaac Newton e mostram o desenvolvimentos paulatino dos saberes a respeito dos objetos inanimados, dos seres vivos, da mente humana e das sociedades. A própria trajetória da filosofia da ciência, inicialmente ancorada em uma visão baseada em leis e deduções e hoje centrada nas propriedades dos objetos e em eventos da realidade, também é explorada aqui.

Galileu Galilei e Isaac Newton – Imagens: Justus Sustermans/Wikimedia Commons/Domínio Público e Godfrey Kneller/Wikimedia Commons/Domínio Público

 

“Bases metodológicas da ciência” é a maior seção do livro e se inicia com uma discussão sobre os conceitos de objeto e evento, dirigindo a atenção para o fato de que eventos associados aos chamados objetos básicos, aqueles estudados pela física e pela química, não são previsíveis de forma absoluta. Seus capítulos abordam também a articulação entre as ciências, defendendo que essa ligação acontece através de disciplinas de conexão reunindo conteúdos autônomos de uma e outra ciência. A bioquímica, por exemplo, seria uma disciplina de conexão que uniria conceitos e metodologias da química aos princípios organizadores da biologia.

Esse é um enfoque que não procura reduzir os enunciados de uma disciplina à outra e compõe a mesma abordagem mobilizada pelos autores para mostrar a especificidade e irredutibilidade da ciência cognitiva e da ciência social, outro ponto abordado na seção. A discussão segue ainda para uma apresentação detalhada do método científico contemporâneo, indicando suas descrições de objetos e de eventos, predições, explicações, modelos, simulações, validação e consolidação de hipóteses.

Ricardo Terra – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

É também na segunda parte do livro que os autores identificam e separam a boa ciência da má ciência, da ciência sem importância e da pseudociência. Certamente a discussão mais mobilizadora do livro, tendo em vista tempos de terraplanismo, cloroquina e movimentos antivacinas que, se não protagonizam mais discursos políticos, ainda orbitam as redes de fake news.

“A pseudociência caracteriza-se pelo uso de processos pouco rigorosos, por vezes, fraudulentos, para sustentar suas afirmações”, escrevem Walter e Ricardo Terra. “Embora seus proponentes procurem apresentá-la como confiável, a pseudociência carece de confiabilidade. Em geral, pseudociências baseiam-se em ‘raciocínio por semelhança’, o que, nesse caso, significa inferir que dois eventos, porque são similares, estão casualmente relacionados. Esse tipo de raciocínio pode levar à conclusão de que uma pessoa tem comportamento explosivo porque possui cabelo vermelho como o fogo ou de que uma pessoa terá vida longa por conta do tamanho de sua ‘linha da vida’ na palma da mão ou, ainda, de que o planeta Marte está relacionado com a guerra porque o enxergamos vermelho.”

O uso da cloroquina e da ivermectina durante a pandemia de covid-19 foi defendido pelos movimentos antivacinas – Foto: Arquivo/Agência Brasil

 

Walter Terra – Foto: Divulgação/Editora Contexto

As ciências, por sua vez, se valem do ‘raciocínio por correlação’, o que significa assumir que dois eventos podem ser causalmente relacionados por estarem correlacionados, dependendo de validação para que isso se confirme. As pseudociências também podem usar correlações, mas estas seriam falsas, escrevem os autores, como a explicação de determinadas mitologias a partir de um suposto contato com alienígenas. Astrologia, criacionismo, homeopatia, adivinhação, psicocinese, curas espirituais, clarividência e ufologia são alguns exemplos de pseudociência elencados no livro.

“A pseudociência pode ser sustentada por diferentes tipos de convicções, mas, frequentemente, é puro charlatanismo com o evidente propósito de enganar os outros para adquirir vantagens pessoais para seus proponentes. Exemplos são anúncios de tratamentos miraculosos, promessas de felicidade e sucesso etc. É importante esclarecer, contudo, que crenças religiosas ou em procedimentos mágicos que não se apresentam como ciência não são pseudociências.”

Ao lado da desconfiança na ciência institucionalizada e da ausência de auxílio médico para certos problemas físicos, mentais ou emocionais, os professores apontam uma terceira razão para a aceitação da pseudociência. Trata-se dos próprios processos cognitivos da mente humana, que, na falta de um aprendizado científico, atribui aos eventos da realidade conexões de causa e efeito que existem apenas na própria mente.

Esse é um dos assuntos da terceira parte do livro, “Bases cognitivas das crenças sobrenaturais, pseudociência e ciência”. De acordo com os autores, essas bases surgem de nossos conhecimentos inatos sobre os objetos e os eventos da realidade – saberes fundamentais no processo evolutivo da humanidade –, que também fornecem as estruturas para a ciência. A diferença é que as pseudociências se distanciam da ciência pela falta de lastro no confronto com a própria realidade.

“Ontologias intuitivas são as noções do conhecimento inato armazenadas nos módulos cognitivos; referem-se à natureza e a objetos da realidade. Essas ontologias incluem a física, a biologia, a psicologia e a sociologia intuitivas, e levam a concepções e a comportamentos característicos que eram adaptativos para os seres humanos ancestrais. Entre esses comportamentos temos a busca por protagonistas e seus propósitos, o que pode resultar na atribuição de capacidade de agir e de ter propósitos a objetos inanimados, alimentando crenças sobrenaturais e atitudes pseudocientíficas.”

A seção que encerra o volume, “Bases institucionais da ciência”, adentra o campo da sociologia da ciência, discutindo as ideias de seus principais autores a respeito da atuação dos agentes e instituições que compõem o campo científico. Nesse movimento, Walter e Ricardo Terra criticam o construtivismo social, enquadrando-o como um posicionamento que ignora os avanços das ciências cognitivas a respeito da formação do conhecimento.

“O construtivismo social foi proposto a partir de interpretações equivocadas sobre a natureza da atividade científica. A alegação de que a ciência constrói a realidade ignora o fato de que, embora a ciência seja orientada por conhecimento prévio, as afirmações científicas são corrigidas em confronto com a realidade. Os construtivistas admitem que a ciência constrói hipóteses ao fazer uso de hipóteses auxiliares que não seriam questionadas, quando, na verdade, as hipóteses auxiliares, como todas as conjecturas científicas, são corrigidas em confronto com a realidade.”

Finalizando a obra, os autores apresentam o panorama da organização institucional das pesquisas científicas. Descrevem as atividades dos grupos de trabalho, a constituição dos laboratórios, os tipos de linhas de financiamento, o papel das universidades e as diferenças entre pesquisa básica e aplicada. O último capítulo é dedicado a considerações sobre a maneira como o conhecimento científico se desenvolve.

“A ciência é parte relevante de nossa sociedade, sendo responsável pelo aumento e pela melhoria na oferta de alimentos, no controle das forças da natureza e na proteção contra inimigos de qualquer sorte (tais como microorganismos, vermes e feras), pela disponibilização de numerosos recursos que tornam a nossa vida mais interessante e, finalmente, por tornar o mundo mais inteligível. Dada a percepção de sua utilidade, o investimento público feito em ciência pelas nações varia de 0,5% a 1% de seus produtos internos brutos, e uma porcentagem similar, ou, em alguns casos, maior advém de recursos privados.”

“(O filósofo da ciência Thomas) Kuhn propôs que o desenvolvimento da ciência não é linear e cumulativo, mas ocorre por acúmulo de dados dentro de um paradigma (ciência normal), que, periodicamente, entra em crise e é substituído por outro em um processo chamado de revolucionário. Essa tese foi contestada em vários aspectos. As mudanças paradigmáticas incomensuráveis (incomparáveis) só ocorreriam na passagem de uma protociência para a ciência madura. Uma ciência, uma vez estabelecida, tem seus arcabouços ampliados, ao invés de serem substituídos. O progresso da ciência ocorre, pois, com o surgimento de novos conceitos e mecanismos, que são postos em concorrência com os contemporâneos, prevalecendo aqueles que adquirem mais apoios.”

Obra que descomplica o tema, Filosofia da ciência é apresentada pelos próprio autores como um curso introdutório ou complementação a apresentações tradicionais sobre o assunto. Vale tanto para estudantes universitários quanto o público em geral. A ciência agradece.

Filosofia da Ciência, de Walter Ribeiro Terra e Ricardo Ribeiro Terra, Editora Contexto, 352 páginas, R$ 79,90.


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