No final de 1973, às vésperas da estreia, o diretor de teatro Fernando Peixoto (1937-2012) viu sua montagem de Calabar: o Elogio da Traição ser censurada integralmente pela ditadura civil-militar. O texto de Chico Buarque e Ruy Guerra só ganharia os palcos em 1980 e tornou-se um símbolo da repressão cultural promovida pelo regime.
Quase 50 anos depois da proibição, o livro O Trabalho de Encenação em Calabar (1973): o Espetáculo Censurado e as Reflexões de Fernando Peixoto investiga o processo criativo do diretor. A obra é fruto da dissertação de mestrado de Nina Hotimsky, que é professora, atriz, sonoplasta e doutoranda em Artes Cênicas na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.
De acordo com Nina, a publicação é parte de um interesse pelo teatro brasileiro dos anos 1970, que considera pouco mapeado. Sua intenção foi entender em que medida a encenação de Calabar, com suas contradições e dificuldades, expressa questões do período que até hoje atravessam a vida dos trabalhadores do teatro e dos brasileiros em geral.
O enredo da peça gira em torno de Domingos Fernandes Calabar, personagem histórico do Brasil colonial, aliado dos holandeses que invadiram o Nordeste no século 17. Calabar foi capturado pelos portugueses, decapitado e esquartejado, e entrou para a história como traidor. O texto de Chico e Guerra problematiza o episódio. Trair o opressor – no caso, os colonizadores portugueses – e mudar de lado para lutar pela liberdade não seria uma traição justificada? As implicações com a ditadura civil-militar, autoritária e repressora, eram óbvias. E o regime não deixou passar.
“A censura de Calabar foi especialmente arbitrária, porque ela não seguiu os protocolos previstos naquela época”, explica Nina. De acordo com a pesquisadora, o texto da peça chegou a ser aprovado, condição que garantia o início da montagem. Quando ela já estava pronta, o procedimento seguinte seria a vinda de um censor para assistir ao ensaio geral.
“O que aconteceu no caso de Calabar é que esse censor nunca veio”, conta. “Eles ficaram enrolando e em dado momento foi expedido um documento dizendo que a estreia estava adiada, sem previsão de quando seria autorizada.” Isso aconteceu no final de 1973. Só no início do ano seguinte a equipe do espetáculo conseguiu que o regime declarasse oficialmente a censura do espetáculo.
“Para o Fernando Peixoto, o que aconteceu no caso de Calabar foi uma censura econômica”, revela Nina. “A peça teve que parar de ser ensaiada porque era impossível continuar a pagar os 80 trabalhadores envolvidos com a montagem – era uma superprodução para a época – sem saber se seria permitido estreá-la.”
O povo em cena
Ao se dedicar à encenação de Peixoto, a atenção de Nina foi atraída especialmente para o trabalho desenvolvido com o coro. No teatro, esse é nome usado para um conjunto de atores que representa uma coletividade – desde cidadãos na pólis grega até a torcida organizada de um time de futebol, por exemplo.
“Nas anotações do diretor, muitas vezes a palavra coro aparece como sinônimo da palavra povo”, comenta a pesquisadora. “Ele coloca o povo em cena. Além de assistirmos aos protagonistas vivendo suas questões, vemos o tempo todo em cena o povo do Recife da época.”
Segundo Nina, as características desse coro são centrais na análise da encenação e vêm, em grande medida, das convicções de Peixoto, que era filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). “Ele tinha essa perspectiva de que o povo poderia ser revolucionário, mudar a estrutura social, mesmo em um momento de muita repressão e de muita desigualdade social.”
Memória e resistência
Conforme conta Nina, Peixoto documentou todo o processo de censura que envolveu Calabar. Esse foi um material fundamental para sua pesquisa, junto de uma série de fitas cassete gravadas pelo diretor e seu assistente Mario Masetti comentando detalhadamente a encenação.
O público teve de esperar até 1980 para assistir à montagem de Peixoto. Até lá, contou apenas com as canções feitas para a peça, lançadas em 1973 e também alvo da censura. Originalmente chamado Calabar, o álbum foi recolhido das lojas e recebeu nova capa e título, Chico Canta. Várias músicas sofreram cortes e mudanças nos versos. Dentre as composições mais conhecidas do disco estão clássicos de Chico como Tatuagem e Bárbara.
“É maravilhoso saber que o Fernando Peixoto pôde encenar a peça anos depois, mas ela não teve o mesmo significado social que teria em 1973”, reflete Nina. “Aquele texto e aquela encenação diziam respeito àquele momento. Em 1980, permitiram outras discussões, mas nunca é possível reparar completamente os prejuízos causados pela censura.”
Uma história do século 17, prevista para os palcos em 1973, vinda a público apenas em 1980. E hoje, onde se encaixa Calabar? “Em 2020, a memória sobre a ditadura civil-militar está em disputa”, reflete Nina. “Acho importante lembrarmos as violências praticadas pelo regime, a resistência operada por trabalhadores e trabalhadoras do teatro e também outras formas de resistência à época, para que possamos pensar quais formas de resistência criar neste momento, que é muito diferente, mas também tem muitas dificuldades.”
Além de diretor, Peixoto foi ator, jornalista, crítico e professor, tendo lecionado na ECA entre 1973 e 1975. Teve sua trajetória vinculada ao Teatro Oficina, no qual atuou em montagens históricas como O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, e Galileu Galilei, de Bertolt Brecht. Passou também pelo Teatro de Arena e, como diretor, montou peças de autores como Brecht, Gianfrancesco Guarnieri e Jean-Paul Sartre. Também dirigiu óperas e escreveu diversos livros, dentre eles O Que é Teatro (1980), Brecht: Uma Introdução ao Teatro Dialético (1981) e Teatro Oficina: Trajetória de Uma Rebeldia (1982).
O Trabalho de Encenação em Calabar (1973): o Espetáculo Censurado e as Reflexões de Fernando Peixoto, de Nina Hotimsky, Editora Desconcertos, R$ 50,00