Por Janice Theodoro da Silva
Em seu livro A questão da USP (Brasiliense, 1984), Florestan escreveu:
A USP foi uma das linhas de frente das lutas políticas provocadas por essa inteligência da situação histórica. Ela sofreu, por conseguinte, um esmagamento cuidadosamente elaborado. Não estava em questão a atividade de alguns professores que corriam por toda a parte, tentando galvanizar resistência e mobilizar a ira popular contra a usurpação do poder político. Eu participei intensamente dessa atividade e acumulei experiência suficiente para saber que ela incomodava, mas não exigia que a ditadura desfechasse o golpe de misericórdia. Nesse nível, o que a ditadura não tolerava era que uma instituição-chave oficial pudesse ser o núcleo de uma resistência que não era meramente defensiva, que ousava desafiar o poder arbitrário e suscitar o fantasma de uma revolução democrática. Impunha-se guilhotinar algumas cabeças, expelir por outros meios a massa de inimigos flutuantes (entre os quais se contavam estudantes e jovens em início de carreira) e reunir as condições para uma reforma universitária às avessas, que aprisionasse as universidades a um sistema de coleiras. (…)
Entre fins de 1968 e o início de 1969 começou, portanto, um período de agonia. Não foram límpidas as lições que recebemos, os que estávamos no confronto mais direto com a ditadura. Primeiro vieram as oscilações que retiraram a maioria da participação responsável e corajosa. Exemplo, a última reunião da Congregação da qual participei. Ainda havia a oportunidade de uma manifestação pública. Lembrei aos colegas o que sucedera com o advento do nazismo na Alemanha. Não podíamos lavar as mãos. Era preciso denunciar seja o sentido da evolução política da ditadura, seja a maquinação contra a universidade e a sua função crítica.
A minha relação com Florestan Fernandes ficou mais profunda quando, em 1974, pude desfrutar de sua companhia na minha casa em Austin, nos Estados Unidos. Tinha sido presa e, ao recuperar a liberdade, optei por aprofundar meus estudos sobre América Latina na Universidade do Texas, na época junto com o meu companheiro (linguagem de época) Carlos Guilherme Mota.
Florestan, aposentado compulsoriamente pelo Ato Institucional Número 5 (AI-5), deixou o Brasil e foi convidado pelos seus colegas para dar aulas nos Estados Unidos e Canadá. Os amigos, naquela época, procuravam ajudar uns aos outros. Silviano Santiago, com sua inteligência refinada e crítica, garantia o clima “pós-concretista” entre todos nós. Éramos, apesar das diferenças de idade, companheiros de caminhada, como falava o antigo e rebelde timoneiro Jean-Pierre Vernant. Richard Graham, professor da Universidade do Texas, David Jackson, também professor da Universidade do Texas, Silviano Santiago e Carlos Guilherme Mota organizaram, em Austin, um encontro voltado para os especialistas em América Latina. A ideia era trazer um pouco de alegria para o mestre de todos nós. Florestan Fernandes, exilado, ficou na minha casa por algum tempo. O convívio cotidiano criou laços de amizade. A trama foi urdida por meio de histórias de vida, dificuldades enfrentadas na infância, lugares de dor, medo, pobreza, origem de um forte sentimento de injustiça social.
Lembro, à noite, a louça suja em cima da pia, a preguiça, esperando coragem para lavar tudo, de preferência no dia seguinte. Não demorava muito, ele levantava e começava a limpar tudo. Eu pedia para ele deixar para o dia seguinte, como era costume. Lavaria tudo pela manhã (coisas de mulher naquela época). Ele explicou que só conseguia dormir quando tudo em volta estivesse limpo, sem pratos sujos e restos de comida. O motivo era o poder das sobras de comida de atrair baratas. Tratava-se de um medo de infância, momento duro de sua vida, quando, ainda pequeno, dormia num porão frequentado por baratas e roedores.
Ele não se esqueceu da sua história, da luta diária de sua mãe, da pobreza experimentada, lembrando sempre de outros, pobres como ele, temerosos da entrega para o sono. Florestan nunca se esqueceu da tragédia humana, da desigualdade social, nem mesmo utilizou hospitais privados para combater a doença que o levou à morte. Foi impecável, coerente em suas convicções até o fim.
Não é fácil.
Desse contato, breve e profundo, ditado pela circunstância da ditadura e pela perseguição, restaram imagens do mestre Florestam Fernandes que compartilho com seus colegas-amigos, antigos alunos, discípulos partícipes com ele de um acirrado e por vezes cruel debate intelectual. Florestan foi fundador de uma reflexão crítica e corajosa de importância significativa para o desenvolvimento do pensamento sociológico no Brasil.
O tempo passa, a memória fica.
Feliz aniversário, professor.
Janice Theodoro da Silva é professora titular aposentada do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.