Conquista da democracia é um “processo constante”, diz Maria Victoria Benevides

Em aula magna na USP, no dia 25 de abril, professora disse que ainda é preciso lutar por um Estado de direito “efetivamente democrático”

 02/05/2024 - Publicado há 8 meses     Atualizado: 03/05/2024 às 18:29
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A Professora Emérita Maria Victoria Benevides (à direita) e a professora Fabiana Jardim, mediadora do evento – Foto: Cecília Bastos

O estudante de Geologia Alexandre Vannucchi Leme e as professoras Heleny Guariba e Ana Rosa Kucinski. Esses três nomes foram citados pela professora Maria Victoria Benevides na aula magna que proferiu na Faculdade de Educação da USP, no dia 25 de abril, como representantes dos 47 alunos, professores e funcionários da USP assassinados pela ditadura militar (1964-1985). Realizada no dia da comemoração dos 50 anos da Revolução dos Cravos, que encerrou a ditadura salazarista em Portugal, a aula – promovida pelo Programa de Pós-Graduação em Educação daquela faculdade – teve como tema Os 60 Anos do Golpe de 1964 e a Democracia Hoje no Brasil. Em homenagem aos mortos e perseguidos pela ditadura brasileira e também ao cinquentenário da Revolução dos Cravos, o público presente recebeu cravos ao fim do evento. Participaram do encontro também a diretora da Faculdade de Educação, professora Maria Carlota Boto, e a presidente da Comissão de Pós-Graduação, professora Iracema Santos do Nascimento. O vídeo com a íntegra da aula – que teve mediação da professora Fabiana Jardim – está disponível no canal da Faculdade de Educação da USP na plataforma Youtube.

Professora Emérita da Faculdade de Educação da USP e socióloga com longa folha de serviços prestados à democracia e aos direitos humanos, Maria Victoria abriu a aula traçando um paralelo entre os 60 anos do golpe de 1964 e os 50 anos da Revolução dos Cravos. De um lado do Atlântico, a data é de comemoração, do outro, o mês é uma oportunidade de relembrar o período da ditadura e manter viva a lembrança dos que sofreram e morreram pela liberdade, disse a professora. “No Brasil, ainda hoje, vivemos na busca pelo pleno direito à memória e à verdade sobre a ditadura, os mortos e desaparecidos – aí incluídos indígenas e quilombolas -, sobre as ossadas clandestinas, sobre a anistia que beneficiou os torturadores.”

Outro paralelo traçado por Maria Victoria na aula foi entre as campanhas utilizadas durante a ditadura e aquelas utilizadas pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022). “São campanhas poderosas, com mensagens que manipulam o medo, os preconceitos, o ressentimento, a sensibilidade religiosa e os valores tradicionais da família. Os discursos de ódio e de mentira, na imprensa, no rádio e na TV, no começo dos anos 1960 e durante a ditadura, seriam copiados na campanha e no governo Bolsonaro, com o uso da desinformação multiplicada – as tais fake news, notícias falsas até no nome, emprestado do inglês – e com a novidade da internet e das redes ditas sociais”, destacou. Para a professora, o discurso da extrema direita segue o mesmo rumo, instigado pelo medo do “fantasma popular”, que iria comunizar o País, acabar com a família, proibir a religião e espoliar a propriedade individual. “Em ambos os casos estão presentes os ideólogos da extrema direita, típicos do chamado populismo autoritário e da negação do Estado de direito, sempre em nome de Deus, da pátria e da família.”

Maria Victoria falou sobre o papel da grande imprensa e dos discursos parlamentares, além dos púlpitos do catolicismo conservador e reacionário, na facilitação do golpe e apoio ao regime autoritário. “No pré-golpe de 1964, percebe-se que esses grupos utilizam uma linguagem radical e alarmista, que tem impacto direto tanto sobre a fragilidade das classes médias quanto sobre o temor das elites. Os termos discursivos tinham conteúdos afetivos e morais – como o ‘desregramento dos costumes’ e a ‘dissolução da família’ – ou economicamente ameaçadores, como ‘proletarização da sociedade’ e ‘confisco da propriedade privada’”, explicou, reforçando que as campanhas moralistas e radicais não eram sustentadas apenas pelos militares, mas também pelas classes dominantes, como o grande capital, o latifúndio, a grande imprensa e a burocracia.

A professora Maria Victoria Benevides: “Eu tenho fé na educação pública e na nossa juventude, porque, se não eles, quem mudaria o mundo? Costumo afirmar: sou professora, logo, sou otimista”- Foto: Cecília Bastos

 

Voltando o foco para a situação atual no Brasil, Maria Victoria Benevides saudou a preservação da democracia pelo governo Lula, mas sem deixar de lembrar o que ainda necessita melhorar, na sua visão. “Está em vigor, hoje, o Estado de direito, tão reclamado na ditadura militar e no último governo, mas nos falta bastante para que possamos falar de um Estado de direito efetivamente democrático. Sua construção decorre da dinâmica histórica e da correlação de forças, ou seja, é um processo constante, jurídico, político e social de lutas, derrotas e conquistas.” A professora citou a invasão do Congresso Nacional, em 8 de janeiro de 2023, que, segundo ela, se assemelha em intuito ao golpe de 1964, usando-o como exemplo para a importância do compromisso com a democracia e da luta contra a extrema direita. “O ex-presidente foi derrotado, mas o bolsonarismo continua forte em todos os setores e grupos da sociedade, e os esforços da transição democrática e republicana continuam urgentes e necessários”, disse.

A professora destacou ainda alguns pontos positivos no atual contexto democrático, dentre eles a recriação gradual de órgãos públicos desativados pelo governo anterior, como o Ministério dos Direitos Humanos e o Ministério da Mulher, e a saída do Brasil do chamado “mapa da fome”, além do crescimento do emprego e da queda da inflação. Mesmo assim, “a transição democrática tem se revelado incapaz de impor o devido controle civil sobre as políticas de segurança”, acrescentou Maria Victoria, referindo-se à questão da brutalidade policial nas periferias do Rio de Janeiro, Bahia e Baixada Santista, em especial contra a população negra. “Ficam evidentes as imensas dificuldades para avançarmos no caminho da democracia se não conseguirmos mudar essa política de segurança, que é mais uma política de violência e morte. Há muito o que fazer no nível institucional, jurídico e político, mas também no campo da educação, como a reformulação das escolas militares e de formação policial.”

A professora reiterou a importância da educação pública e da Universidade de São Paulo na luta pela memória e verdade da ditadura, conscientizando a juventude que não viveu a violência do período, mas que tem como responsabilidade não repeti-la. “Esta é uma universidade pública, considerada a melhor do País, e está entre as 100 melhores do mundo. Defendo a exigência da responsabilidade social da Universidade, responsabilidade crucial em nosso País, cuja história, regada com o sangue dos escravizados, é até hoje marcada por profundas desigualdades de todo tipo, a começar pelo racismo – herança dos quase 400 anos de escravidão legal. Em outras palavras, e seguindo Paulo Freire, creio que a principal motivação dos professores e alunos deve ser a construção coletiva e constante de uma universidade emancipatória, e defendo que a USP contribua efetivamente para o debate sobre os projetos de desenvolvimento do País, em todas as áreas”, discursou.

Respondendo a uma pergunta do Jornal da USP, após a aula, Maria Victoria concluiu: “Eu tenho fé na educação pública e na nossa juventude, porque, se não eles, quem mudaria o mundo? Costumo afirmar: sou professora, logo, sou otimista”.

O evento, realizado no Auditório da Faculdade de Educação da USP, contou com a distribuição de cravos e homenagens aos perseguidos pela ditadura militar (1964-1985) – Foto: Divulgação/Faculdade de Educação

 

* Estagiária sob supervisão de Roberto C. G. Castro


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