A partir da observação da espécie de foraminífero planctônico (microrganismo invisível a olho nu) Globorotalia truncatulinoides, que habita o topo da coluna d’água nos oceanos, cientistas do Instituto de Geociências (IGc) e da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP estão conseguindo reconstituir o comportamento nos últimos 70 mil anos de uma feição oceânica denominada Giro Subtropical do Atlântico Sul, que ocorre em todo o litoral brasileiro. Trata-se de um fenômeno oceanográfico presente durante todo o ano e que tem influência no aquecimento global.
Em artigo publicado recentemente na revista Scientific Reports os cientistas mostram pela primeira vez que, no passado geológico recente, o Giro Subtropical do Atlântico Sul teve um papel fundamental no controle da concentração de CO2 da atmosfera terrestre. O estudo também mostra que, caso o limite sul do giro continue se deslocando para o sul em função das mudanças climáticas, deverá haver emissões adicionais de CO2 do Oceano Austral, que banha o Continente Antártico.
Tainã Marcos Lima Pinho, que é mestrando em Geociências no IGc, sob a orientação do professor Cristiano Mazur Chiessi, da EACH, e principal autor do artigo, explica que os giros subtropicais são largos sistemas de circulação de correntes superficiais que acontecem em todos os oceanos. “Essa circulação é influenciada pela ação dos ventos”, descreve. Os giros são enormes reservatórios de calor e salinidade e, como a circulação é dinâmica, existe grande troca de energia entre regiões tropicais e subtropicais. Por exemplo, as correntes de contorno leste no atlântico sul (que vêm do polo sul, e permeiam o continente africano em direção ao norte) transportam águas frias e com baixa salinidade em direção ao equador. Já as correntes de contorno oeste, fazem o caminho inverso, se deslocando da região do nordeste brasileiro e seguindo direção ao polo sul, transportando águas quentes e com alta salinidade. “Os giros subtropicais são definidos por esse conjunto de circulações oceânicas superficiais”, destaca o cientista para o Jornal da USP.
Mudanças na força, extensão e geometria dos giros podem alterar o ecossistema marinho e o clima global
Tainã Pinho conta que trabalha com espécies de foraminíferos planctônicos desde seus estudos na graduação. “São microrganismos que calcificam e flutuam no topo da coluna d’água. Eles nos dão informações valiosas, por exemplo, sobre a temperatura superficial no oceano, condições de salinidade e mudanças na produtividade primária, importantes para entender a história geológica oceânica e climática”, descreve.
Relação espécie e giros
Por meio de observações da distribuição moderna de Globorotalia truncatulinoides, os cientistas puderam identificar uma forte relação entre essa espécie e os giros subtropicais, não só no Atlântico Sul como também no Norte.
No ano passado, como relata Tainã Pinho, cientistas publicaram um trabalho baseado em modelos numéricos onde observaram que os giros subtropicais migraram em direção aos polos na ordem de 0.1 grau por década, nos últimos 40 anos. “Sendo os giros subtropicais reservatórios de calor e salinidade, essa migração deve causar impactos significativos no ambiente marinho”, explica o cientista, ressaltando que “tem sido observado aumento na temperatura da corrente oceânica superficial ao largo da costa brasileira, nos últimos anos, que tem reduzido o estoque comercial pesqueiro”. Além disso, segundo o cientista, os giros subtropicais são considerados “desertos oceânicos” e, de maneira geral, tem sido projetada marcante redução na produtividade marinha em função da expansão desses “desertos”. “Mudanças na força, extensão e geometria dos giros podem alterar o ecossistema marinho e o clima global”, explica.
Mas, para além de uma análise dos últimos 40 anos, o estudo com a espécie Globorotalia truncatulinoides possibilitou aos cientistas do IGc e da EACH uma volta no tempo em períodos-chave dos últimos 70 mil anos. “Aplicamos a abundância relativa dessa espécie como indicadora do comportamento meridional do Giro Subtropical do Atlântico Sul”, explica o cientista.
Os pesquisadores analisaram sedimentos marinhos que foram coletados próximo à desembocadura do Rio São Francisco, entre os Estados de Alagoas e Sergipe. O local em que foram coletados os sedimentos marca o limite norte do Giro Subtropical do Atlântico Sul. “Nós comparamos a porcentagem de Globorotalia truncatulinoides desses sedimentos com um outro registro oriundo do limite sul do Giro Subtropical do Atlântico Sul. Com esses dados conseguimos traçar o comportamento meridional do Giro Subtropical do Atlântico Sul em escala milenar para os últimos 70 mil anos”, descreve Tainã Pinho.
Nosso trabalho destaca que as mudanças em curso dos giros subtropicais em direção aos polos podem aumentar ainda mais a liberação de CO2 para a atmosfera terrestre
Eventos Heinrich
De acordo com o pesquisador, os resultados indicam, pela primeira vez, que o Giro Subtropical do Atlântico Sul migrou para sul durante eventos de mudanças climáticas abruptas, conhecidos como eventos Heinrich, e que ocorreram durante a última era glacial. Esses eventos são caracterizados pelo marcante resfriamento no Hemisfério Norte com liberação de icebergs que alcançaram a Península Ibérica.
O cientista explica que essas alterações são produzidas pela redução na intensidade da Célula de Revolvimento Meridional, que transporta águas quentes, salinas e superficiais do Atlântico Sul até altas latitudes do Atlântico Norte. Como resultado, o Atlântico Sul passou por um drástico aquecimento durante os eventos Heinrich. E os resultados, baseados na abundância relativa de Globorotalia truncatulinoides, mostram que a migração do Giro Subtropical do Atlântico Sul transportou em direção ao Polo Sul o calor estocado durante a maior parte dos eventos Heinrich.
De acordo com os cientistas, esse transporte teria sido responsável por fortalecer a ressurgência do Oceano Austral, liberando quantidades substanciais de CO2 para a atmosfera. O aquecimento do Oceano Austral, segundo Tainã Pinho, fortalece os ventos de oeste – que circundam a Antártida – e um fenômeno chamado ressurgência, que é a ascensão das águas do fundo para a superfície. “Na Antártida essa ressurgência causa grande emissão de C02 para a atmosfera”, explica o cientista. “Nosso trabalho destaca que as mudanças em curso dos giros subtropicais em direção aos polos podem aumentar ainda mais a liberação de CO2 para a atmosfera terrestre, agindo como um feedback positivo para o aquecimento global.” O estudo faz parte de um projeto de pesquisa financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) que é coordenado por Cristiano Mazur Chiessi.
Mais informações com Tainã Marcos Lima Pinho, e-mail taina.pinho@usp.br, ou Cristiano Mazur Chiessi, e-mail chiessi@usp.br
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