Mulheres negras têm menos acesso às práticas esportivas e, mesmo quando se estabelecem como atletas, sofrem mais com atitudes racistas. – Foto: Ferdinando Ramos / All Sport via Fotos Públicas
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Estudo antropológico acompanhou a rotina de cinco equipes de futebol feminino em São Paulo e mostrou que mesmo enfrentando preconceitos misóginos (repulsa ou ódio contra mulheres) dentro e fora do campo as jogadoras fizeram do esporte um espaço de construção de relações de apoio e de solidariedade para lidar melhor com traumas e violências sofridos em suas vidas. A proposta da pesquisa foi verificar como marcadores sociais de diferença – gênero, raça, sexualidade e classe – permeavam a prática futebolística de mulheres.
“Sou feita de chuva, sol e barro”: o futebol de mulheres praticado na cidade de São Paulo, tese defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, teve o título inspirado nas palavras de incentivo dirigidas às jogadoras mulheres em um dia de competição. Dentro do campo, “as intempéries enfrentadas podiam ser a chuva, o sol e o barro”, mas as tormentas maiores tinham sido vivenciadas por algumas daquelas meninas, muitas vezes, dentro da própria casa, conta a autora da tese, a antropóloga Mariane da Silva Pisani.
Misoginia, racismo, sexismo, lesbofobia e transfobia foram surgindo no contexto de conversas em grupo e nos depoimentos registrados em caderno de campo da antropóloga: “[…] ele abusou repetidamente de mim. Toda vez que minha mãe saía pra trabalhar, ele abusava de mim. Quando ouvia ele chegando no meio tarde, fugia pro campo de futebol, só para não ficar sozinha com ele”.
Sobre esse episódio, a antropóloga contou que os abusos começaram quando a adolescente tinha apenas 11 anos, depois do casamento de sua mãe. Além dos abusos, o padrasto ameaçava matar os meios-irmãos da menina, caso ela revelasse o fato a sua mãe. A situação só teve fim quando uma professora desconfiou ao ver a menina em crise de choro no dia em que o padrasto foi buscá-la mais cedo na escola. A mãe foi convocada na escola e o crime revelado. O padrasto foi denunciado e posteriormente preso, mas os traumas ficaram na vida da adolescente, incluindo o histórico de quatro abortos. “No futebol, com a ajuda das amigas de equipe, estava conseguindo superar o trauma sofrido por anos e também tinha sido dissuadida da ideia de cometer suicídio”, contou a adolescente. Segundo a antropóloga, a prática do futebol e a pertença ao grupo de mulheres com histórias semelhantes fizeram que os episódios de violências pudessem ser superados e contornados.
Marcadores sociais
Gênero, raça e sexualidade foram algumas das categorias utilizadas para a compreensão de como as jogadoras construíram suas redes de sociabilidade e afetividade. A pesquisa feita nos bairros de Guaianazes e Itaquera (zona leste de São Paulo), Rio Pequeno e Barra Funda (zona oeste) e Vila Mariana (centro-sul) constatou que nos bairros mais pobres o esporte era encarado pelas meninas como profissionalismo e como uma possibilidade de ascensão social; já nos bairros de maior poder aquisitivo, as mulheres jogavam por lazer e como esporte amador.
O estudo também apontou que no mundo do futebol as mulheres negras tinham menos acesso às práticas esportivas e, mesmo quando se estabeleciam como atletas, elas sofriam mais com atitudes racistas. Ao contrário, as mulheres brancas praticavam o futebol por lazer ou diversão, mas também sofriam abusos por seus corpos serem vistos como objeto de desejo masculino.
Sobre lesbianismo, embora a antropóloga percebesse que fosse um fato comum no universo fubebolístico feminino, o assunto teve que ser tratado com delicadeza porque as jogadoras não se sentiam seguras nos lugares que frequentavam, principalmente em espaços públicos. Na pesquisa, os nomes foram trocados a pedidos das próprias jogadoras para evitar desavenças familiares homofóbicas; problemas com patrocinadores que se recusam a associar sua imagem às mulheres que fogem ao padrão heteronormativo; e com a própria imprensa, que costuma macular a imagem de mulheres atletas lésbicas e negras.
Neste contexto, as jogadoras em equipe buscavam construir estratégias que as ajudassem a se proteger a enfrentar as desigualdades. “Evocavam o sentimento de grupo e de pertencimento e, a partir do futebol, criavam laços amorosos, de proteção e de amizade entre elas”, explica Mariane. Nos espaços privados esportivos – vestiários, casas das amigas de equipe e confraternizações – se sentiam mais seguras e podiam agir mais naturalmente.
Segundo a antropóloga, em conversas com as atletas que compuseram a etnografia do estudo ela pode perceber o quanto era significativo pertencer àquela equipe de futebol. “Estar inserida em uma rede de apoio auxiliava as mulheres na superação das dificuldades da vida e as ajudava a ressignificar o lugar delas no mundo”, explica.
A tese Sou feita de chuva, sol e barro: o futebol de mulheres praticado na cidade de são Paulo foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, sob orientação da professora Heloisa Buarque de Almeida, em março de 2018.
Mais informações: e-mail marianepisani@gmail.com ou (48)99920-0544, com Mariane da Silva Pisani