Vírus modificados geneticamente ajudam a descobrir células que selam vasos sanguíneos do cérebro, impedindo entrada de água, sais e glicose; no futuro, técnica poderá ser adotada em estudos do sistema nervoso e no diagnóstico de doenças degenerativas – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
.
.
Em cada parte do corpo, as células dos vasos sanguíneos têm sua própria maneira de evitar problemas no fluxo de sangue, criando barreiras na camada celular que reveste os vasos por dentro, o endotélio. Em um órgão complexo como o cérebro, onde alterações na circulação ou invasão por agressores podem gerar graves consequências, as barreiras precisam ser reforçadas, por isso as células são diferentes das de outros tecidos do organismo.
Para descobrir quem são as misteriosas células responsáveis por essa “blindagem”, pesquisadores do Instituto de Química (IQ) da USP fizeram uso inédito de uma técnica já premiada com um Nobel. Eles utilizaram vírus modificados em laboratório e que se ligam às células dos vasos sanguíneos do cérebro. O método permite estudar o sistema nervoso por meio de microscopia eletrônica e poderá servir, no futuro, como ferramenta de diagnóstico de doenças nervosas, além de ajudar a descobrir como driblar essa barreira quando ela trabalha contra nós, atrapalhando a chegada de fármacos a um cérebro que precisa deles, por exemplo.
Vírus dedo-duro
“As barreiras endoteliais selam os vasos sanguíneos do organismo e se adaptam às necessidades de cada órgão”, aponta o professor Ricardo Giordano, do IQ, que supervisionou a pesquisa. A barreira endotelial especializada do cérebro, que recebe o nome de barreira hematoencefálica, é quem regula as trocas de nutrientes, metabólitos (o que a célula precisa descartar) e moléculas diversas entre o sangue e o órgão, além de impedir a invasão de microrganismos no sistema nervoso central.
Se a circulação em um órgão como o cérebro é ainda mais crítica, é também mais complexa. O cérebro se comunica com o corpo por meio de neurotransmissores, moléculas armazenadas em vesículas e que são liberadas pelas sinapses nervosas. “Essa comunicação é feita através de trocas de moléculas, por isso qualquer variação no fluxo do sangue pode afetar o funcionamento do órgão. Assim, o cérebro se protege selando muito bem os vasos sanguíneos”, explica o professor Ricardo Giordano.
Mas essa proteção reforçada também impede que fármacos cheguem ao cérebro, sendo um obstáculo para certos tratamentos. Esse é um dos motivos pelos quais a diversidade vascular cerebral vem sendo pesquisada – o que é em si um grande desafio. “Como os vasos são microscópicos, fica difícil diferenciar os neurônios das células dos vasos por meio das técnicas tradicionais”, aponta o professor Giordano.
A solução encontrada pelos pesquisadores do IQ foi usar a técnica de Phage Display, desenvolvida pelos vencedores do prêmio Nobel de Química de 2018, George Smith, Frances Arnold e Gregory Winter. “Este método utiliza bacteriófagos (fagos), que são vírus que atacam bactérias, como marcadores das células dos vasos.” Ou seja, torna possível saber o que é neurônio e o que é célula endotelial.
.
Biblioteca de sensores
O vírus bacteriófago tem o genoma modificado em laboratório para que carregue um peptídeo (pedaço de proteína) na ponta. “É esse peptídeo que vai se ligar às células dos vasos, funcionando como uma espécie de sensor”, detalha Giordano. “Por meio da engenharia genética, foi possível produzir uma biblioteca genética com bilhões de bacteriófagos, cada um com um peptídeo diferente na ponta.”
Como a interação entre as células acontece por meio de proteínas, os peptídeos reagem com as proteínas das células existentes nos vasos. “Quando os peptídeos se encaixam nas proteínas, o vírus fica preso nas células”, descreve. “Essa ligação permite identificar quais células são dos vasos sanguíneos do cérebro, o que torna o bacteriófago um marcador.”
.
A partir da técnica de Phage Display, outra pesquisadora do grupo, Fenny Hui Fen Tang, observou em um microscópio eletrônico os vírus ligados às células. “A análise das imagens mostrou que os vírus se concentraram na junção entre as células dos vasos sanguíneos”, conta Giordano. “Os peptídeos estão ligados a uma estrutura formada por um conjunto de proteínas que selam a junção e não deixam nada passar, seja água, sais ou glicose.” As conclusões do estudo de Fenny foram publicadas em artigo na revista científica PNAS.
O método facilitará o estudo sobre as estruturas que fazem a junção das células, pois é possível analisar imagens do cérebro em funcionamento. “Estamos avaliando se o peptídeo identificado poderá ser utilizado em estudos sobre o sistema nervoso”, diz o professor. “Isto porque algumas doenças degenerativas, como o Alzheimer, enfraquecem as junções, o que talvez faça os peptídeos se ligarem menos às proteínas das células. Assim, o peptídeo poderia ser usado como uma ferramenta de diagnóstico.”
Arte: Jornal da USP
Mais informações: e-mail giordano@iq.usp.br, com o professor Ricardo Giordano
..