Por Margareth Artur – Portal de Revistas USP
Em artigo publicado na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, a professora Benedetta Bisol, do Departamento de Teoria e Fundamentos da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), conta que quando Adolf Hitler foi nomeado Reichskanzler, líder e chanceler do Terceiro Reich na Alemanha, o filósofo Emmanuel Levinas publicou o texto Algumas reflexões sobre a filosofia do hitlerismo, um estudo sobre os fundamentos filosóficos da ideologia nacional-socialista, um pouco antes da concretização dos “planos nazistas de extermínio sistemático dos judeus, dos ciganos, dos homossexuais, dos negros e, no geral, dos opositores ao regime”. Benedetta cita a filósofa alemã Hannah Arendt para lembrar que a perseguição aos judeus não representava, naquela época, algo tão surpreendente ou novo, pois o antissemitismo já existia antes de o movimento nazista se consolidar e expandir-se na Alemanha.
O livro de Levinas é citado no artigo porque aponta quais os elementos fundamentais para se compreender as raízes filosóficas do nazismo. Segundo o autor, a essência teórica do hitlerismo é a valorização do corpo humano em si, separado de qualquer relação histórica ou cultural, determinada pela “herança de sangue”, “um modo peculiar de exaltação da dimensão corpórea do ser humano, cuja natureza se determina como uma espécie de acorrentamento dos indivíduos à própria corporeidade”.
Nesse contexto, não há como se libertar “dos vínculos do biológico”. O foco do artigo é discutir a relação entre corpo, liberdade e racismo, pondo em pauta também o debate contemporâneo brasileiro sobre racismo e as ligações entre discurso racista moderno e o mito da democracia racial no Brasil.
Benedetta traz a definição de raça do filósofo italiano Roberto Esposito: “esta constitui ao mesmo tempo o caráter espiritual do corpo e o caráter biológico da alma”. Em uma leitura “biopolítica” da filosofia do hitlerismo, o judeu é tido como “parasita que coloca em risco a saúde do corpo político”. A filosofia do hitlerismo corresponde a uma nova concepção de ser humano: aquele que não conta com uma linhagem de sangue é uma “existência sem vida”, própria para o extermínio – essa é a “absoluta diferença entre arianos e não arianos”. Historicamente, a “invenção da raça” consistiu, historicamente, em justificar como natural o que é, na verdade, cultural. Julgando pela aparência e pela estrutura biológica, os nazistas enxergavam judeus, negros e ciganos como inferiores à raça ariana.
A autora chama a atenção para as origens históricas do racismo no Brasil, com início na escravidão dos povos africanos no século 16 e a imigração, nos séculos 19 e 20, de brancos vindos de países europeus, fruto de uma “política do branqueamento”, incentivada nos últimos anos do Império, marcada pela intenção de “tornar o país mais claro”. É quando se consolida o mito da democracia racial brasileira, culminando com a libertação dos escravos. A verdade é que a questão do racismo não era motivo de atenção do governo e da população porque o Brasil era visto como “um paraíso racial, isto é, um país sem preconceito e discriminação raciais”, e, consequentemente, o País carecia de leis de proteção “dos direitos humanos dos não brancos”. Por isso muitas injustiças e abusos foram cometidos contra negros e indígenas.
Para derrubar o mito da democracia racial brasileira, observa a autora, é preciso lutar contra “modelos de falsa igualdade”, e pelo reconhecimento da diferença racial, porém, na defesa de uma sociedade igualitária, sem segregação social entre brancos e negros e “sem uma sociedade de supremacia negra”. Nesse contexto, com o intuito de refletir sobre o que especialistas consideram como “um marco do racismo brasileiro”, é fundamental que se destaque a questão escravista. O racismo brasileiro é definido por critérios socioculturais, “é negro, antes de mais nada, quem possui aqueles traços que no imaginário social remetem à raça negra, isto é, a cor da pele, o cabelo crespo”, entre outros. Esse entendimento da raça, aliado à concepção de racismo, remete à ideia de corpo e sua problemática em relação à liberdade.
Segundo a autora, a discriminação no Brasil, baseada em teorias raciais, alcança não só negros e judeus, mas também grupos religiosos, “minorias étnicas e culturais, inclusive as formas de discriminação que conceitualmente se aproximam ao racismo (mulheres, homossexuais, deficientes, dissidentes)”. O hitlerismo contemporâneo possui um carácter profundamente racista, que não se materializa somente no corpo dos excluídos, mas também daquele que provavelmente se sente livre. A igualdade não é ignorar as diferenças que retratam indivíduos e grupos sociais, mas reivindicar “iguais direitos para todos e todas, isto é, o acesso à instrução, à saúde, à moradia, ao mundo do trabalho”, com a construção de um espaço político e social que certifique a manifestação das diferenças.
Artigo
BISOL, B. “Racismo, corpo e liberdade”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, v. 1, n. 76, p. 126-141, 2020. ISSN: 2316-901X. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v1i76p126-141. Acesso em: 02 set. 2020.
Mais informações: Benedetta Bisol, professora adjunta do Departamento de Teoria e Fundamentos da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: bisol@unb.br
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