Elza Soares: a voz do feminismo negro representado na canção “Mulher do fim do mundo”

Artigo publicado na revista “Criação & Crítica” analisa os temas interseccionais sobre várias opressões e identidades presentes na obra icônica da cantora

 07/03/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 08/03/2022 as 16:27

“Mulher do fim do mundo” é uma das músicas do 32º álbum de estúdio de Elza Soares, o homônimo A Mulher do Fim do Mundo, lançado em 2015 – Foto: Reprodução

 

Margareth Artur/Revistas da USP

Ninguém esquece: dia 22 de janeiro de 2022 calou-se uma das vozes mais expressivas da música popular brasileira. Elza Soares era dona de um cantar potente, eclético, inovador e único. A cantora se tornou um ícone, aclamada por alguns como a cantora do milênio, não só pelo canto singular, mas pela força, determinação e símbolo de resistência, de combate ao preconceito de raça e de gênero, tanto no campo pessoal quanto no profissional. Ela é uma das mais representativas figuras do feminismo negro. Nas palavras do pesquisador Brito da Conceição, autor de um artigo sobre a cantora na revista Criação & Crítica, em seu canto, Elza Soares quer sempre “demonstrar as dificuldades enfrentadas pelas mulheres negras no que diz respeito à religiosidade, classe social, origem, sexualidade, etc.”, proposta denominada pelo autor como “interseccional”, interdisciplinar.

+ Mais

Elza Soares: o canto negro que tem a cara do Brasil

Em suas canções, Elza Soares assumia uma postura política “interseccional” na medida em que seu cantar denunciava “as diversas formas e manifestações das subordinações a que as mulheres negras são submetidas”. O autor escolhe como foco de sua análise a canção Mulher do fim do mundo, que mostra o sentimento de libertação do medo e da solidão da mulher negra, segregada na sociedade, mas que encontra na arte um caminho de alegria e liberdade de expressão, mais precisamente, o carnaval, citado na canção, como um símbolo, um atalho “para ser como se é”, para “dizer o que se cala”, nas próprias palavras de Elza.

A análise da canção Mulher do fim do mundo, de Alice Coutinho e Romulo Fróes, é feita a partir da letra, sem levar em conta ritmo ou melodia, por exemplo. Esse foco respalda-se na chamada “teoria da interseccionalidade”, que conta com um aspecto transdisciplinar, ou seja, que permite a elaboração de debates e meios de impedir “a invisibilidade dos problemas de subordinação das mulheres negras”, colaborando com a divulgação e discussão sobre os movimentos sociais, expondo os entraves, impedimentos e dificuldades em relação ao racismo, às opções religiosas, ao machismo, à repressão sexual, possibilitando à mulher negra se apresentar ao mundo com sua própria voz. A canção é ponto de partida para o autor denunciar a invisibilidade e o silêncio impostos às mulheres negras. Nesse contexto, Elza Soares declara: “A construção desse sujeito – as mulheres negras – trouxe maior complexidade e exige o reconhecimento das profundas diferenças culturais nas práticas das mulheres […] A mulher de dentro de cada um não quer mais silêncio”

O artigo também investiga a canção Mulher do fim do mundo tomando por base duas perspectivas: a da mulher negra que fala da solidão, da pele negra, a “mulher do fim do mundo”, e também, nas palavras do autor, a “fuga do texto do silêncio pode ser uma forma de resistir ao silêncio, não se submetendo a ele”, uma forma de resistência, um plano deliberado para possibilitar práticas de escuta entre mulheres, propiciando a manutenção da sororidade entre as feministas, a partir dos pontos em comum entre as diversidades das narrativas propostas por essas mulheres.

Elza Soares representa a luta das mulheres negras, a resistência e a denúncia de preconceitos de toda ordem, não só na canção em foco, mas ao longo de toda a sua carreira, tocando em temas polêmicos em várias músicas interpretadas por ela. A fala libertadora de Elza não pode se calar: Na avenida deixei lá, a pele preta e a minha voz, minha fala, minha opinião, a minha casa, a minha solidão joguei do alto do terceiro andar, quebrei a cara e me livrei do resto”. A mulher do fim do mundo é a que grita, que busca, que reivindica, que “sempre fica de pé. No fim, eu sou essa mulher”, declara a cantora, que, na publicação do artigo, ainda estava entre nós. Mas ela continua viva na música, pois, afinal, esta revela a mulher que se impõe: “me deixe cantar”, “eu não estou indo embora […], me deixem cantar até o fim”.

Artigo

CONCEIÇÃO, F. W. B. da. Feminismo negro e interseccionalidade na canção “Mulher do fim do mundo” (2015) interpretada por Elza SoaresRevista Criação & Crítica, São Paulo, v. 31, n. 31, p. 51-64, 2022. ISSN: 1984-1124. DOI:  https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124.i31p51-64. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/criacaoecritica/article/view/188533. Acesso em: 08 fev. 2022.

Contato

Francis Willams Brito da Conceição – Doutorando em Teoria da Literatura no Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), campus Recife.

e-mail franciswillams1@gmail.com


Revistas da USP
A seção Revistas da USP é uma parceria entre o Jornal da USP e a Agência USP de Gestão da Informação Acadêmica (Águia) que apresenta artigos de autores de diversas instituições publicados nos periódicos do Portal de Revistas USP.

.


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.