Apesar da queda da atividade econômica causada pela pandemia de covid-19, Estados e capitais brasileiros não registraram perda expressiva de receitas no primeiro semestre de 2020, aponta nota técnica divulgada em edição extra do boletim da Rede de Pesquisa Solidária. De acordo com a nota, as perdas de arrecadação foram compensadas por transferências federais viabilizadas pelo Programa Federativo de Enfrentamento à Covid-19. Entretanto, as transferências para os Estados e às capitais não corresponderam aos locais mais atingidos por infecções e mortes, o que é resultado da falta de sintonia entre o Programa Federativo e as políticas de saúde.
O boletim compara o comportamento das principais receitas de impostos e transferências e das despesas por função e subfunção dos Estados e das capitais com base nos dados dos Relatórios Resumidos da Execução Orçamentária para o 1º semestre de 2019 e 2020. Os dados de 2019 foram atualizados pela variação do Índice de Preços ao Consumidor Ampliado (IPCA) entre julho de 2019 e junho de 2020. As comparações foram realizadas a partir das receitas efetivamente arrecadadas e as despesas liquidadas nos três primeiros bimestres do ano e no acumulado do semestre. Além disso, foram também utilizados dados de contaminação e mortes por covid-19 durante os seis primeiros meses de 2020, nos Estados e capitais.
Segundo os autores da nota técnica, no início de 2020 as finanças dos Estados e capitais apontavam para uma leve recuperação, após um período de diminuição e estagnação entre 2014 e 2019. A queda de receitas entre 2015 e 2017, principalmente, foi bastante determinada pela redução do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e das transferências federais, além de menor volume de receitas de capital. Após um primeiro bimestre de recuperação de receitas, as políticas de distanciamento social iniciadas em março afetaram diretamente a atividade econômica, com quedas importantes na produção e circulação de mercadorias e serviços. A queda do Produto Interno Bruto (PIB) no segundo trimestre de 2020 foi a maior da série histórica iniciada em 1996, alcançando 11,4% na comparação com o mesmo período de 2019.
O Congresso Nacional aprovou medidas de socorro fiscal da União com o objetivo de manter minimamente os recursos necessários para que Estados e municípios pudessem enfrentar os desafios na saúde, assistência social e manutenção das demais despesas públicas. O socorro veio principalmente por meio da Lei Complementar 173/20, aprovada pelo Congresso no início de maio. A lei determinou a transferência de R$ 60,15 bilhões para Estados e municípios para compensar perdas tributárias e evitar a suspensão do pagamento das dívidas com a União e com outras instituições até o final de 2020. Também foram aprovadas medidas de manutenção dos níveis de transferência dos fundos de participação de Estados e municípios (FPE e FPM, respectivamente) no valor de R$ 16 bilhões e liberados recursos federais para transferências por meio do Ministério da Saúde e outros ministérios.
Os autores da nota relatam que, à época, havia dúvidas se o volume desses recursos seria suficiente. Com o fechamento das informações fiscais relativas ao primeiro semestre de 2020, disponíveis nos Relatórios Resumidos da Execução Orçamentária, divulgados pelo Tesouro Nacional, foi possível analisar o que de fato ocorreu com as finanças de Estados e capitais no primeiro semestre de 2020. A produção do boletim foi coordenada por Ursula Dias Peres, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP e do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), e Fábio Pereira dos Santos, assessor da Câmara Municipal de São Paulo. O levantamento teve a colaboração de Felipe José Miguel Garcia, da EACH, e Luma Mundin Costa, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Rádio USP
Ouça a entrevista realizada no Jornal da USP no Ar, da Rádio USP, com Ursula Peres e Fábio Pereira dos Santos.
Receitas e Despesas
O socorro fiscal da União não foi vinculado a despesas específicas. Ou seja, a substituição de receitas de impostos por transferências correntes da União significou, por exemplo, uma diminuição do volume de recursos obrigatórios para a educação, tanto nos Estados quanto nos municípios. Nos Estados, a Receita Corrente Líquida (RCL) caiu no terceiro bimestre, mas ficou praticamente estável em relação ao 1º semestre de 2019. As capitais tiveram perda de 1% na RCL no terceiro bimestre, mas registraram 4% de aumento real no semestre.
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Em Estados muito afetados pela pandemia, como o Ceará, Rio de Janeiro e Pernambuco, houve perda de até 10% do ICMS no 1º semestre de 2020 comparado a 2019. Em outros Estados, como Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Pará, houve ganhos no ICMS de até 10%. A maioria das capitais recebeu volumes de transferências federais maiores que as perdas na arrecadação. Somente no Rio de Janeiro, João Pessoa e Florianópolis as transferências correntes da União não compensaram suas perdas. No gráfico abaixo, os dados da coluna azul indicam que a distribuição do socorro fiscal que se deu via outras transferências da União foi também desigual entre os Estados. Em alguns casos significou uma alta maior que a perda registrada de arrecadação.
Alguns Estados sequer tiveram perda arrecadatória e receberam o socorro fiscal, com ganho expressivo de receita corrente líquida. Foi o caso de Mato Grosso, que teve um aumento de Receita Corrente Líquida no semestre de quase 20%. Esse desacerto se expressou também na ausência de sintonia entre a distribuição do apoio financeiro da União e a situação dos Estados atingidos pela pandemia, em especial no número de mortes por covid-19 . O gráfico abaixo mostra que os Estados que tiveram mais mortes nesse período não foram necessariamente os mais beneficiados pelo socorro fiscal, resultado da falta de sintonia entre o programa federal e as políticas de saúde locais.
Nos Estados e nas capitais houve um expressivo aumento nos gastos em saúde. Porém, os gastos totais foram menores do que no primeiro semestre de 2019. Os autores do boletim observam que nos Estados, a saúde, como esperado, registrou a maior elevação dos gastos em valores absolutos (16,2% ou R$ 7 bilhões a mais em 2020). A assistência social também teve aumento importante, em porcentual maior que o da saúde (18,1% ou R$ 400 milhões a mais em 2020). Os autores da nota destacam que as despesas com auxílio emergencial são federais e os Estados e capitais, apesar de possuírem ações similares de assistência às famílias durante a pandemia, têm desembolso muito inferior nessa função. Dentre os gastos com saúde a subfunção mais destacada foi a assistência hospitalar e ambulatorial, que representa 70% dos gastos estaduais em saúde (cerca de R$ 5 bilhões a mais em 2020, certamente em função da ampliação das estruturas de UTI e contratações emergenciais de leitos e hospitais de campanha).
Também nas capitais a despesa de maior volume foi saúde, que registrou aumento de 8% em relação à liquidação de 2019. Dentre os gastos com saúde, os principais aumentos foram com assistência hospitalar e ambulatorial e vigilância epidemiológica, como esperado. A função ‘Administração’ teve importante variação porcentual, inclusive maior que a saúde. Essa função é utilizada por muitas capitais para registro de despesas com pessoal ativo e contratos amplos de prestação de serviços, o que pode também estar associado a contratações para a saúde.
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Perspectivas
De acordo com os autores da nota, os dados apresentados indicam que o primeiro semestre de 2020, em comparação ao primeiro semestre de 2019, mostrou certa estabilidade de receitas dos Estados brasileiros e pequena elevação das receitas das capitais. Esse resultado é fruto de uma arrecadação de impostos menos negativa do que esperado e, principalmente, pelas transferências do socorro fiscal da União, previsto na LC 173/2000 e outros instrumentos.
O comportamento das receitas foi bastante distinto entre Estados e capitais e mostrou desigualdades horizontais tanto no ICMS quanto no Imposto Sobre Serviços (ISS). Houve também desigualdades verticais na distribuição do socorro fiscal da União (amplificadas pela suspensão do pagamento do serviço da dívida dos Estados e capitais), o que gerou benefícios especiais para os estados de São Paulo e Goiás, assim como para as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
Em relação às despesas, o boletim aponta que o destaque mais relevante, como esperado, foi o aumento do gasto em saúde, tanto nos Estados quanto nas capitais, principalmente em assistência hospitalar. É importante mencionar que houve leve queda nos gastos com educação nesse primeiro semestre. No entanto, é importante acompanhar a evolução das receitas de impostos no segundo semestre pois não há garantia de que os recursos do socorro fiscal da União sejam utilizados para manutenção e desenvolvimento do ensino, uma vez que não há vinculação obrigatória. Diante do quadro atual de receitas e despesas e a continuidade do enfrentamento da pandemia, que se desenvolve desigualmente nos Estados, os autores enfatizam que é importante repensar e aprimorar os mecanismos de distribuição de recursos. O socorro fiscal deve ter seu foco nos Estados e municípios com maiores perdas de impostos de modo a manter seu equilíbrio financeiro e garantir a oferta de serviços públicos à população brasileira.
A Rede de Pesquisa Solidária é uma iniciativa de pesquisadores para calibrar o foco e aperfeiçoar a qualidade das políticas públicas dos governos federal, estaduais e municipais que procuram atuar em meio à crise da covid-19 para salvar vidas. O alvo é melhorar o debate e o trabalho de gestores públicos, autoridades, congressistas, imprensa, comunidade acadêmica e empresários, todos preocupados com as ações concretas que têm impacto na vida da população. Trabalhando na intersecção das Humanidades com as áreas de Exatas e Biológicas, trata-se de uma rede multidisciplinar e multi-institucional que está em contato com centros de excelência no exterior, como as Universidades de Oxford e Chicago.
A coordenação científica está com a professora Lorena Barberia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). No comitê de coordenação estão: Glauco Arbix (FFLCH e Observatório da Inovação), João Paulo Veiga (FFLCH), Graziela Castello, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Fábio Senne (Nic.br) e José Eduardo Krieger (Incor). O comitê de coordenação representa quatro instituições de apoio: o Cebrap, o Observatório da Inovação, o Nic.br e o Incor. A divulgação dos resultados das atividades será feita semanalmente através de um boletim, elaborado por Glauco Arbix, João Paulo Veiga e Lorena Barberia. São mais de 40 pesquisadores e várias instituições de apoio que sustentam as pesquisas voltadas para acompanhar, comparar e analisar as políticas públicas que o governo federal e os Estados tomam diante da crise.
As notas anteriores estão disponíveis neste link.