Regulamentar ou não o uso de cigarros eletrônicos no Brasil? Essa pergunta se tornou a discussão mais relevante nos assuntos de saúde pública do País desde o final do ano passado e deve começar a tomar um rumo quando se encerrar a consulta pública disponibilizada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para revisar a proibição do uso de dispositivos eletrônicos para fumar, mais conhecidos como vapes ou pod.
A grande repercussão sobre o assunto foi gerada devido à divisão de opiniões sobre a regulamentação. Enquanto parcela das pessoas argumenta que a liberação pode garantir a procedência, evitando o agravamento de problemas de saúde e promovendo a segurança dos consumidores que optem pelo uso, outra parte acredita que a regulamentação pode agravar ainda mais o vício no País. Segundo dados da Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec), instituição brasileira de pesquisas de mercado, quase três milhões de pessoas no Brasil fazem uso de cigarros eletrônicos, mesmo sendo proibidos desde 2009 pela Anvisa. Nos últimos seis anos, o aumento foi de 600%.
Em outubro de 2023, a senadora Soraya Thronicke (Podemos), apresentou o Projeto de Lei (PL) que regulamenta a produção, importação, exportação, comercialização, controle, fiscalização e propaganda dos cigarros eletrônicos. A proposta baseou-se na falta de controle sanitário sobre os produtos comercializados; embalagens sem advertências; uso indiscriminado entre adolescentes; sonegação fiscal e prejuízos econômicos.
A professora do Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP, Eliana Franco Neme, é absolutamente contrária à regulamentação dos cigarros eletrônicos. “Entre os valores constitucionais assegurados está a proteção da saúde, atrelada a um princípio de vida digna. Não me parece minimamente razoável liberar a comercialização de um produto que contém elementos comprovadamente prejudiciais à saúde, sob o argumento de que eles são menos fatais que os antigos cigarros”, justifica.
De acordo com Eliana, a diminuição da mortalidade e das consequências do consumo não pode ser comprovada. Além disso, ela afirma que essa “é uma equação em que só existem perdedores e, em grande medida, os maiores perdedores são justamente as pessoas que mais precisam dos serviços públicos de saúde, que, por sua vez, vivem sobrecarregados”, discorre ela. “Precisamos amadurecer enquanto sociedade e deixar de romantizar o vício, seja ele em álcool, em drogas, em cigarros de papel ou eletrônicos”, pontua.
Nicotina em questão
O pneumologista Ubiratan de Paula Santos, da Divisão de Pneumologia do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), também comenta que não é favorável à regulação dos cigarros eletrônicos. “Para os indivíduos que querem parar de fumar, eu não vou indicar um produto fabricado pela mesma indústria que fabrica o cigarro e que mantém as pessoas dependentes da nicotina”, afirma.
O médico explica que o cigarro eletrônico apresenta altas concentrações de nicotina e não é bem regulado. Essa substância, segundo Santos, além de causar dependência, atua no sistema cardiovascular e no endotélio, no revestimento dos vasos, provocando inflamação, e também altera a variabilidade da frequência cardíaca, predispondo à arritmia e morte súbita. “O uso regular do cigarro eletrônico também estimula uma redução das vias aéreas dos pulmões, provocando um processo inflamatório crônico que predispõem a processos infecciosos pulmonares”.
Apesar de não existir estudos a longo prazo acerca do produto, Santos aponta que as substâncias em líquido colocadas nos vapes são usadas para “arrastar” a nicotina para a pessoa inalar ou aspirar e são irritantes para as vias aéreas dos pulmões e, algumas delas, com risco aumentado para câncer de pulmão.
Além disso, o especialista ressalta que diversos estudos têm mostrado o risco aumentado para o infarto agudo do miocárdio e alterações pulmonares agudas em jovens e pessoas que usam o cigarro eletrônico, pela elevada concentração de nicotina.
Outro agravante foram os casos de intoxicação por nicotina em crianças, como explica Santos. “Nos Estados Unidos, o registro de intoxicação por nicotina em crianças nas casas onde se usavam cigarro eletrônico apresentou uma incidência muito elevada em crianças, que morreram e tiveram casos convulsivos da intoxicação por nicotina, comparado com as casas em que se usavam cigarros comuns,” declara o professor.
De acordo com ele, para ajudar um adulto a parar de fumar, deve ser feito um trabalho de orientação, abordagem e terapia cognitiva-comportamental. Além disso, ele cita alguns medicamentos à base de reposição de nicotina, como adesivos, gomas e pastilhas, que podem ajudar a pessoa a ter um menor desconforto no processo para parar de fumar.
Lá fora
Enquanto o Brasil discute se legaliza ou não o uso do vape, do outro lado do oceano Atlântico, o primeiro-ministro britânico Rishi Sunak anunciou no final de janeiro uma estratégia para banir a venda de vapes descartáveis até o final do ano no Reino Unido, devido ao aumento significativo de menores de idade usando o produto. No entanto, essa medida não encerra o esquema governamental Swap to Stop (em tradução livre Trocar para Parar), estabelecido em 2023. O plano permite que fumadores adultos na Inglaterra tenham acesso a kits de vapes e apoio comportamental para ajudá-los a abandonar o hábito e a melhorar os resultados de saúde.
Dentre as novas regras a serem estabelecidas aos britânicos, estão: restringir sabores que são comercializados especificamente para crianças e garantir que os fabricantes produzam embalagens mais simples e menos atraentes visualmente; nova forma de exibição dos vaporizadores nas lojas, afastando-os da vista das crianças e de produtos que lhes agradam, como doces; novas multas às lojas da Inglaterra e País de Gales que venderem cigarros eletrônicos ilegalmente a crianças. Além disso, será ilegal a venda de produtos de tabaco a qualquer pessoa nascida em ou após 1º de janeiro de 2009. Ainda na Europa, a Assembleia Nacional da França aprovou por unanimidade o Projeto de Lei Nº 2.162, que visa a proibir os vapes descartáveis. Na quinta-feira (08), o PL, já com alterações feitas pelo Senado, foi protocolado e encaminhado à Comissão de Assuntos Sociais.
Voltando para a América, nos Estados Unidos, mesmo com os números expressivos de fumantes, a diminuição do uso de vapes cresce cada vez mais entre adolescentes, como mostra um levantamento do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) daquele país. De acordo com os dados de 2022 até 2023, o uso de cigarros eletrônicos por estudantes do ensino médio caiu de 14,1% para 10%.
*Estagiária sob supervisão de Ferraz Junior
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