De acordo com o Supremo Tribunal Federal, o governo deverá criar um programa de renda básica no exercício fiscal do ano de 2022. Com isso, o presidente da República precisará fixar um valor de renda básica para a população mais vulnerável economicamente, composta pela camada pobre e extremamente pobre – com renda per capita inferior a R$ 178 e R$ 89, respectivamente. Como a renda básica é uma modalidade entre as políticas de transferência de renda, surge um novo capítulo na história desse tipo de programa no Brasil.
Crise da pandemia
Segundo a professora de Gestão de Políticas Públicas Renata Mirandola Bichir, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, é possível dizer que esse debate teve, sim, relação com os impactos sociais e econômicos causados pela pandemia. “Com a pandemia e a necessidade de proteger outros perfis de população, principalmente de trabalhadores informais, a gente tem uma oportunidade para repensar qual é o tipo de proteção e de benefício assistencial que a gente vai dar para essa população.”
A professora lembra principalmente do auxílio emergencial que, diferentemente da renda básica universal, seria um programa de transferência de renda condicional, já que não foi direcionado a toda a população brasileira.
O auxílio emergencial chegou, entre abril e dezembro de 2020, a 67 milhões de brasileiros. A parcela até agosto era de R$ 600, passando para R$ 300 em dezembro. Estudos apontaram que os efeitos foram a diminuição da desigualdade de renda e a redução na pobreza no Brasil, impedindo, por exemplo, uma queda maior do Produto Interno Bruto durante a pandemia – ao invés de cair 8,4% no cenário mais otimista, caiu 2,1% em 2020 com relação a 2019.
Os custos de um programa
Os gastos totais com o auxílio emergencial foram de R$ 300 bilhões, cerca de 4% do PIB. Os altos custos acabaram sendo apontados como um dos fatores para a não prorrogação do auxílio em certos momentos. Além disso, outros programas de transferência de renda que o governo Bolsonaro pretendia criar também esbarraram em questões de financiamento. Foi o caso tanto do Renda Brasil quanto do Renda Cidadã, que ainda estão em discussão.
Ambos os programas visam a substituir e incrementar o Bolsa Família, um dos mais icônicos programas de transferência de renda do Brasil. Hoje, o Bolsa Família atende cerca de 41 milhões de pessoas e tem o custo de aproximadamente R$ 30 bilhões por ano.
A professora Elaine Toldo Pazello, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP de Ribeirão Preto, explica que, mesmo com a decisão do Supremo, a questão fiscal ainda pode ser um entrave para um novo programa de renda: “Há um sério problema com as contas do governo, o próprio fechamento do Orçamento foi uma novela, ou seja, não se tem mais de onde tirar. Acredito que tem que haver uma discussão do redesenho do Bolsa Família para que o mesmo possa dar conta desse novo programa que deve ser implementado”.
Histórico de combate à pobreza
O programa de renda básica que deve aparecer no exercício fiscal de 2022 é baseado em um projeto de lei de 2004, segundo determinou o STF. Elaborado pelo então senador Eduardo Suplicy, o projeto previa a criação de um programa de renda básica de cidadania, que garantiria o direito de todos os brasileiros a um benefício monetário. A abrangência, porém, poderia ser feita em etapas, o que, juntamente com os valores pagos, ficaria a cargo do Executivo.
O projeto acabou não indo para a frente, mas foi acompanhado por discussões importantes no que se refere à transferência de renda no Brasil. Em 2001, surge o Cadastro Único, durante o governo de FHC, base importante para direcionar programas futuros como o próprio auxílio emergencial. Em 2003, o Bolsa Família, que unificou programas passados, colaborou para a luta contra a pobreza no Brasil. Também se destacam o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, em 2004, e o Brasil Sem Miséria, em 2011.
“O primeiro objetivo de qualquer programa de transferência de renda é garantir focalização, cobertura e uma estrutura administrativa. O governo federal é responsável pelo desenho e formação do programa e critérios de elegibilidade, ou seja, quais são as condicionalidades”, afirma a professora Renata. Especialistas apontam que, mesmo apresentando problemas como a não correção de valores, o Bolsa Família foi importante por estabelecer importantes condicionalidades, como exigir que os beneficiários matriculem os filhos na escola e mantenham sua vacinação em dia.
Hoje, a professora Renata enxerga um esvaziamento de certas políticas desse tipo, mas vê que é quase impossível um político querer se candidatar no Brasil sem pensar na dimensão e relevância de programas de transferência de renda. “Com o deterioramento das condições econômicas, fiscais e políticas, já a partir de 2014, culminando em 2016, a gente começa a ter um problema de subfinanciamento do Sistema Único de Assistência Social (base dessas políticas) como um todo e isso, de alguma maneira, afeta a qualidade do Bolsa Família. A gente para de atualizar, por exemplo, os critérios de corte de renda e os valores transferidos, mesmo porque é importante lembrar que o Bolsa Família não é um programa indexado ao salário mínimo, e aí a gente começa a ter um processo de declínio.”
Renda básica no Brasil: um caminho possível?
“Com a pandemia, a situação (de renda da população pobre) piorou ainda mais. Então acredito que o País tenha que ter um programa desse tipo, mas eu defendo algo como o Bolsa Família, ou seja, um programa focado nos pobres, com a situação crítica das contas públicas. O BF já está bastante avançado nesse quesito com o Cadastro Único”, reitera a professora Elaine.
Vale lembrar que a própria discussão do Bolsa Família passou pela opção de garantir um benefício universal, como pediriam os defensores da renda básica incondicional. Os obstáculos no Brasil passam por contas públicas em crise e até uma falta de interesse continuado daqueles que ocupam o poder. Porém, a professora Renata acrescenta outra questão nessa receita: a resistência de parcelas da população a programas tidos como assistencialistas. Esses segmentos enxergam mecanismos de transferência de renda somente como recursos eleitorais por parte de políticos.
“A grande questão é que não podemos ter só transferência de renda, mas, em um país extremamente desigual como o Brasil, isso é extremamente importante, ainda que na nossa sociedade conservadora isso seja visto de um ponto de vista bastante estigmatizado e simplista. Eu acho que esse debate mal colocado se associa inclusive com a baixa qualidade do nosso debate público sobre políticas públicas”, conclui Renata.
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