Influência das línguas africanas no português brasileiro é alvo de estigmas

Com racismo linguístico em nível institucional, especialistas explicam que uma forma de reverter esse preconceito é através de debates e congregações de países

 Publicado: 15/07/2024
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Mesmo com muitas palavras brasileiras de origem africana, a pesquisadora alerta que há uma resistência das instituições de ensino em reconhecer a contribuição de línguas africanas –  Fotomontagem: Jornal da USP sobre imagens: Clker-Free-Vector-Images/Pixabay e OpenClipart-Vectors/Pixabay

 

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A influência de línguas africanas na língua portuguesa brasileira recebeu o nome de pretoguês e gera, até hoje, diversos estigmas e preconceitos. De acordo com Sheila Perina, doutoranda pela Faculdade de Educação (FE) da Universidade de São Paulo, em cotutela com a Universidade Pedagógica de Maputo, da África, o termo tem origem colonial, e surgiu para indicar uma maneira pejorativa de classificar o português falado pelos negros nas ex-colônias, indicando que o modo de falar dos africanos e de seus descendentes não poderia ser considerado português legítimo.

Sheila Perina de Souza, doutoranda da Faculdade de Educação da USP – Foto: Arquivo Pessoal

Apesar disso, ela explica que o termo ganhou um novo significado em solo brasileiro: “Por conta desses discursos que circulavam durante o período colonial no Brasil, a antropóloga e intelectual Lélia González propõe uma positivação do termo, para descrever a variedade do português que é profundamente influenciado pelas línguas africanas. Nós falamos o pretoguês, um português profundamente marcado pelas influências das línguas africanas”.

Sobre as características da africanização do português brasileiro, a especialista comenta que o grupo de línguas Bantu tem um padrão silábico consoante-vogal que trouxe uma influência para a nossa língua. Alguns exemplos dessa influência na fala do português brasileiro são o apagamento ou enfraquecimento do “r” final dos infinitivos verbais, além da não marcação do plural com o morfema “s”, como ocorre no português europeu — nas línguas Bantu, a indicação do singular ou plural é feita por um prefixo, como indica Sheila.

Contudo, essa influência das línguas africanas no português são, frequentemente, alvos de estigmas. A doutoranda afirma que isso é produzido por opressões ligadas tanto à raça quanto à classe, e é observável, por exemplo, no preconceito que muitas pessoas sofrem ao não marcarem o plural. Ela complementa: “Isso é devido à influência das línguas Bantu, e é apresentado no português brasileiro quando nós dizemos ‘os menino’, ou ‘os livro’, porque marcamos esse plural inicialmente e não no final”.

Preconceito linguístico

Mesmo com muitas palavras brasileiras de origem africana, o que cria uma receptividade com o nosso léxico, com influências em nível estrutural, a pesquisadora alerta que há uma resistência das instituições de ensino em reconhecer a contribuição de línguas africanas. Isso ajuda a criar e perpetuar estigmas, enfatizando o racismo científico e linguístico enraizado na sociedade brasileira, fator que contribui para que as marcas das línguas africanas no português não sejam legitimadas.

“Os países que hoje têm o português como língua oficial e vivenciaram a colonização vivem questões, principalmente relacionadas à educação e à legitimação do português popular, que se assemelham. São países que têm a sua variedade popular do português profundamente marcada pela influência das línguas Bantu, e essa influência na estrutura da língua portuguesa tende, como um processo natural de evolução, a se distanciar da norma padrão, gerando estigma, racismo e preconceito. São elementos que as pessoas vivem diariamente e não se dão conta que isso tem uma raiz histórica que está ligada a todo o processo de colonização linguística que nós sofremos”, explica.

Por esse motivo, Sheila entende que a possibilidade desses países se reunirem em um espaço de discussão é fundamental, em congregações sobre o debate da língua portuguesa brasileira e africana. Um desses exemplos foi a Semana da Língua Portuguesa em Pretória, na África do Sul, evento do qual a especialista foi palestrante.

Celso Luiz de Oliveira Júnior – Foto: Arquivo pessoal

Debates sobre o português brasileiro

Outro palestrante do evento, Celso Luiz de Oliveira Junior, mestrando em Antropologia Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, comenta que, mesmo com a África do Sul não sendo um país de língua portuguesa, a influência africana na nossa linguagem cria uma proximidade muito maior do português brasileiro com os sul-africanos, por exemplo, no sentido da sonoridade e da forma de pronunciar, algo que não ocorre com o português europeu.

Ele ainda complementa sobre a importância de eventos como esse, com discussões sobre racismo institucional, descolonização das relações e das próprias instituições, já que auxiliam na promoção da legitimidade do reconhecimento internacional em relação à africanidade da língua portuguesa brasileira — conforme o pesquisador, o Brasil tem vários exemplos de negação institucional da cultura de pessoas negras quando se trata de apresentar símbolos nacionais no exterior —, além da representatividade na esfera pública, visto que a língua de um país é um dos maiores símbolos de uma nação.

“Do ponto de vista institucional, acredito que tenha ocorrido um certo ponto de inovação nessa situação toda, a relação com a diplomacia me parecia uma questão bem interessante e inovadora, não apenas para tratar questões burocráticas ou negociar politicamente, mas foi para provocar a interação entre eventuais parceiros acadêmicos, se utilizando da produção acadêmica e cultural já colocada, ao mesmo tempo que também agregou o conhecimento. São novas portas que se abriram, portas para novas conexões, produções, divulgação científica e promoção de cultura e extensão universitária”, finaliza.

*Estagiário sob supervisão de Marcia Avanza e Cinderela Caldeira


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