



Os altos valores dessas NFTs chamaram atenção uma vez que essas obras não possuem uma presença física tradicional: diferente de pinturas, esculturas e outros suportes já assimilados pelo público, a NFT existe em um espaço virtual que ainda está sendo trazido para a realidade de colecionadores e instituições de arte e, em consequência, para o público em geral. Apesar dos outros suportes serem constantemente reproduzidos – seja em livros, revistas, panfletos, pôsteres, entre outros -, a aura da obra de arte continua existindo para quem observa o original, no entanto nas NFTs podemos notar que ainda não existe essa noção no imaginário dos consumidores, mas sim um processo a ser construído pelos agentes de mercado, pesquisadores e, também, os artistas que as produzem.
Um dos mais recentes exemplos de NFT é a obra The Burned Picasso, criado pela Fractal Studios, que ocorre a partir de uma ação do grupo em que foi queimado, no dia 20 de julho de 2021, o rascunho original da obra Fumeur V (1964), de Pablo Picasso, visando imortalizá-lo na blockchain criando NFT. A obra do artista espanhol foi comprada em leilão por aproximadamente US$ 20 mil pelo coletivo, que registrou a versão original no Unique One Art Marketplace.
Na performance da queima, a assinatura de Picasso permaneceu quase intacta e o seu entorno queimou em formato de coração, fato que levou o grupo a registrar uma segunda versão intitulada The Burned Picasso 2, com o remanescente do original. A atitude, que horroriza alguns e arranca aplausos de outros, traz a polêmica da relevância da materialidade e do que é fazer arte. O coletivo afirmou que tinha a intenção de “eternizar a obra” com a atuação, levantando críticas sobre a destruição do próprio patrimônio material, apagando-o da realidade e recriando uma realidade paralela digital, perpetuada pelos pixels dos vídeos e registros antecessores, retirando da obra aspectos fundamentais para as artes visuais, como papel, tintas e meios de preservação. Entretanto, há quem defenda que a queima da obra representa o poder sobre antigos paradigmas e transfira o poder para as mãos de todos. Esvaziando as salas com cordas, distanciando o público da obra e tornando a queima um momento revolucionário da arte.
Seja qual for a opinião, é irrefutável a ideia de desmaterialização da arte, já muito explorada por pesquisadores do meio artístico. Em 2018, a obra Garota com balão, de Banksy, foi leiloada por um milhão de euros na Sotheby’s e, assim que o martelo foi batido, ela foi desintegrada pelo triturador escondido em sua moldura. O efeito da performance imediatamente fez com que seu valor aumentasse, e os restos da obra já foram expostos no Museu de Burda, na Alemanha, gerando efeitos inimagináveis e integrando um imaginário dentro do mercado de arte.
Nesta mesma trilha, a Performing Arts Company também colocou movimentos-assinaturas de dança em NFTs, na forma de gifs animados com avatares virtuais. Os movimentos podem ser comprados em aplicativos e jogos on-line. A ambiguidade entre dar autonomia ao artista para vender sua mão de obra e desmaterializar a presença pela substituição do universo físico pelo universo digital se confundem neste mercado, que, mesmo jovem, já tem repercussão suficiente para criar efeitos que sentiremos com todo seu peso a longo prazo.
Chegar à queima de uma obra de Picasso é efeito de uma longa caminhada de desmaterialização, de atos que se tornam performáticos e dão à obra outro sentido, antes não previsto. Ao mesmo passo que revela que o mercado criado e os ícones desejados estão além da queima de um rascunho de 1964, e que o conteúdo de uma obra não é sua matéria, mas a ideia que um triturador não pode destruir. Resta-nos a reflexão sobre pensar se no futuro nos lembraremos do Picasso pela destruição ou pela arte que um dia foi produzida por ele; porém, mais importante, é saber se o acesso à NFT será dos mesmos artistas marcados por um fenótipo comum ou se usaremos esse poder da performance para incitar aos atos criativos (e destrutivos) que podem servir a mais pessoas.