Um quadro de Picasso encriptado: sobre NFT e desmaterialização

Por Aila Regina da Silva e Cássia Perez da Silva, doutorandas do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP

 30/08/2021 - Publicado há 3 anos     Atualizado: 14/03/2022 as 12:33
Aila Regina da Silva – Foto: Arquivo pessoal

 

Cássia Perez da Silva – Foto: Arquivo pessoal

 

 

No que se refere ao mercado de arte, as NFTs (non-fungible token’s) ganham destaque no segundo semestre de 2020, em meio da pandemia de covid-19, como uma nova tendência de consumo para a arte. Consiste em uma obra digital ou crypto art, com edição limitada e registro criptográfico de token que não pode ser modificado, ou seja, tem sua autenticidade salva. Essas obras possuem uma capacidade de reprodutibilidade muito alta, não se danificando com inúmeras repetições e, mesmo que outra pessoa possua a mesma imagem, não pode ser vista como original devido à ausência do token.

Os altos valores dessas NFTs chamaram atenção uma vez que essas obras não possuem uma presença física tradicional: diferente de pinturas, esculturas e outros suportes já assimilados pelo público, a NFT existe em um espaço virtual que ainda está sendo trazido para a realidade de colecionadores e instituições de arte e, em consequência, para o público em geral. Apesar dos outros suportes serem constantemente reproduzidos – seja em livros, revistas, panfletos, pôsteres, entre outros -, a aura da obra de arte continua existindo para quem observa o original, no entanto nas NFTs podemos notar que ainda não existe essa noção no imaginário dos consumidores, mas sim um processo a ser construído pelos agentes de mercado, pesquisadores e, também, os artistas que as produzem.

Um dos mais recentes exemplos de NFT é a obra The Burned Picasso, criado pela Fractal Studios, que ocorre a partir de uma ação do grupo em que foi queimado, no dia 20 de julho de 2021, o rascunho original da obra Fumeur V (1964), de Pablo Picasso, visando imortalizá-lo na blockchain criando NFT. A obra do artista espanhol foi comprada em leilão por aproximadamente US$ 20 mil pelo coletivo, que registrou a versão original no Unique One Art Marketplace.

Na performance da queima, a assinatura de Picasso permaneceu quase intacta e o seu entorno queimou em formato de coração, fato que levou o grupo a registrar uma segunda versão intitulada The Burned Picasso 2, com o remanescente do original. A atitude, que horroriza alguns e arranca aplausos de outros, traz a polêmica da relevância da materialidade e do que é fazer arte. O coletivo afirmou que tinha a intenção de “eternizar a obra” com a atuação, levantando críticas sobre a destruição do próprio patrimônio material, apagando-o da realidade e recriando uma realidade paralela digital, perpetuada pelos pixels dos vídeos e registros antecessores, retirando da obra aspectos fundamentais para as artes visuais, como papel, tintas e meios de preservação. Entretanto, há quem defenda que a queima da obra representa o poder sobre antigos paradigmas e transfira o poder para as mãos de todos. Esvaziando as salas com cordas, distanciando o público da obra e tornando a queima um momento revolucionário da arte.

Seja qual for a opinião, é irrefutável a ideia de desmaterialização da arte, já muito explorada por pesquisadores do meio artístico. Em 2018, a obra Garota com balão, de Banksy, foi leiloada por um milhão de euros na Sotheby’s e, assim que o martelo foi batido, ela foi desintegrada pelo triturador escondido em sua moldura. O efeito da performance imediatamente fez com que seu valor aumentasse, e os restos da obra já foram expostos no Museu de Burda, na Alemanha, gerando efeitos inimagináveis e integrando um imaginário dentro do mercado de arte.

Nesta mesma trilha, a Performing Arts Company também colocou movimentos-assinaturas de dança em NFTs, na forma de gifs animados com avatares virtuais. Os movimentos podem ser comprados em aplicativos e jogos on-line. A ambiguidade entre dar autonomia ao artista para vender sua mão de obra e desmaterializar a presença pela substituição do universo físico pelo universo digital se confundem neste mercado, que, mesmo jovem, já tem repercussão suficiente para criar efeitos que sentiremos com todo seu peso a longo prazo.

Chegar à queima de uma obra de Picasso é efeito de uma longa caminhada de desmaterialização, de atos que se tornam performáticos e dão à obra outro sentido, antes não previsto. Ao mesmo passo que revela que o mercado criado e os ícones desejados estão além da queima de um rascunho de 1964, e que o conteúdo de uma obra não é sua matéria, mas a ideia que um triturador não pode destruir. Resta-nos a reflexão sobre pensar se no futuro nos lembraremos do Picasso pela destruição ou pela arte que um dia foi produzida por ele; porém, mais importante, é saber se o acesso à NFT será dos mesmos artistas marcados por um fenótipo comum ou se usaremos esse poder da performance para incitar aos atos criativos (e destrutivos) que podem servir a mais pessoas.


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