Além de referência na Pedagogia Social, nós o conhecemos como pai de família generoso e muito dedicado. Uma pessoa simples, um excelente docente que não escondia sua origem popular.
Um homem negro que, conforme a sua biografia relatada em diversas mídias, seria mais um Silva, entre tantos outros, cujas adversidades em sua infância e adolescência o tornariam mais um dado nos levantamentos estatais.
Mas, diferentemente do que diz a letra do referido funk do Mc Bob Rum, e parafraseando uma outra grande música popular brasileira – dos Racionais MCs –, o professor Roberto da Silva contrariou as estatísticas, demonstrando que sim, sua estrela brilhara, mantendo-se forte e na luta pelo que acreditava. Na busca por uma Pedagogia Social que pudesse desaprisionar todos os corações e mentes.
Roberto da Silva foi brilhante. Um pedagogo, intelectual e professor doutor da USP que demonstrou, através das amarguras da vida, possíveis caminhos para, como diria Paulo Freire, construir uma educação como prática de liberdade.
Assim como poucos, nos fez vislumbrar a possibilidade concreta de retorno à África. Uma África que estivesse para além de um objeto de estudos. Mas como um espaço de produção de conhecimento. Uma África parte de nós.
Lembro como se fosse hoje: o ano era 2013. Eu era estudante do segundo ano de Pedagogia na Faculdade de Educação da USP. Era uma aula sobre Políticas Públicas Educacionais e o professor Roberto nos relatava detalhes de sua nova investida: a cooperação acadêmica com uma universidade angolana – a Universidade Lueji A’Nkonde.
“Pretendo ir para Angola, junto com professores e pesquisadores, no próximo semestre”, disse ele calmamente. De súbito, meus olhos, então, brilharam. Eu nunca tinha ouvido falar de uma experiência com a África tão próxima e não tinha visto nada parecido em minha vivência como estudante da Universidade de São Paulo. Sem pestanejar, eu disse: “Me leve também!”.
Foi uma daquelas falas que escapa do pensamento e sai direto pela boca, sem autorização. A sala olhou com certo estranhamento. Afinal, quem desejaria ir à África, um espaço projetado midiaticamente como um lugar de tragédias, guerras e doenças?!
Mas o professor Roberto gentilmente me acolheu e prontamente olhou e disse: “Olhe, menina… se você realmente quer ir, então passe na minha sala depois da aula”. Uma semana depois, ao perceber o meu forte interesse pelos trabalhos em África, me convidou para participar de seu grupo de pesquisa.
E assim, um ano depois, me abriu as janelas do mundo, proporcionando um intercâmbio de graduação na Universidade Lueji A’Nkonde, em Angola. Experiência que rendeu os primeiros vistos para estudantes de graduação emitidos pela embaixada daquele país.
As trocas com esta universidade angolana foram iniciadas em 2010, com a assinatura do importante convênio de cooperação com a Faculdade de Educação (FE) da USP, contribuindo para a formação de quadros dos dois países.
Através desta parceria, coordenada pelo professor Roberto, foi possível promover intercâmbios da graduação e da pós-graduação entre os dois países. O que contribuiu para a construção de programas de mestrado e doutorado na Universidade Lueji A’Nkonde e viabilizou a aproximação da FE-USP com outras epistemologias e aprofundamentos a respeito da diversidade cultural e educacional africana.
O professor Roberto não só desempenhou o papel de coordenador no pioneiro curso de Mestrado em Educação na Escola Superior Pedagógica da Lunda Norte (ULAN), mas também deixou sua marca nas colaborações acadêmicas com Angola ao estabelecer o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação da Universidade Lueji A’Nkonde (Gepêulan). Esse grupo, composto por pesquisadores de ambos os países, representou outra significativa contribuição para o cenário acadêmico.
Além disso, é importante destacar que, através destas parcerias, foi possível incentivar e fomentar a cooperação acadêmica entre a ULAN e a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) em 2019.
Assim, ao longo de sua destacada trajetória acadêmica na USP, dedicou-se de maneira persistente e brilhante à construção e fortalecimento de parcerias com o continente africano. Sua abordagem transcendia a mera utilização dessas conexões como objetos de pesquisa.
Conscientemente, ele reconhecia e tratava seus pares como sujeitos históricos, considerando suas complexidades e, acima de tudo, estabelecendo uma relação de parceria nas trocas e na produção de conhecimento.
Ainda é difícil acreditar que Roberto da Silva nos deixou no final de dezembro passado. Sua partida deixou um vazio significativo para sua esposa, dois filhos, amigos, orientandos, estudantes e para todos aqueles que foram impactados por seu vasto legado no campo da pedagogia social.
Com firmeza no olhar, em seus posicionamentos e práticas cotidianas, Roberto da Silva destacou-se por sua significativa contribuição na defesa dos direitos de crianças e adolescentes.
Sua atuação foi marcada por reflexões profundas no âmbito da administração de sistemas educacionais, além da incansável luta pelos espaços não escolares, especialmente abrigos, unidades de internação de adolescentes e estabelecimentos penitenciários
Este comprometimento esteve intimamente enraizado em sua própria trajetória de vida. Desde a primeira infância, o professor Roberto enfrentou desafios extraordinários, começando com a mudança de São José dos Campos para São Paulo, junto com sua mãe e três irmãos.
Diante das dificuldades financeiras, a família passou quatro meses sem residência fixa, as crianças foram encaminhadas para diferentes abrigos, enquanto sua mãe foi hospitalizada em um centro psiquiátrico. Na época, Roberto tinha apenas três anos de idade.
Com 12 anos, após cometer uma infração interna no abrigo, foi transferido para a Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor) no Tatuapé. Aos 18 anos, ele se viu desabrigado e, sem alternativas, enfrentou a dura realidade das ruas de São Paulo. Aos 19 anos, acabou envolvendo-se em atos infracionais que o levaram a ser condenado a 36 anos de reclusão, cumprindo pena no antigo complexo penitenciário do Carandiru.
Durante seu período na prisão, desenvolveu um interesse pelo Direito e, como autodidata, conseguiu reduzir sua pena em um quinto, ao mesmo tempo em que iniciava sua militância pelos direitos dos presos.
Após conquistar a liberdade, retomou seus estudos, concluindo o ensino formal interrompido na quinta série, e se graduou em Pedagogia pela Universidade Federal do Mato Grosso.
Em 1996, Roberto da Silva obteve o título de mestre pela USP, defendendo a dissertação intitulada Os filhos do governo: a formação da identidade criminosa em crianças órfãs e abandonadas. Trabalho este que o ajudou a reencontrar dois de seus irmãos que haviam sido separados pelo Estado, conforme suas próprias palavras em entrevista ao Jornal do Campus em 2015.
Nesta pesquisa, destacou-se ao empregar sua própria história de vida como um método de pesquisa inovador para reconstituir as políticas da época.
Sua dissertação não apenas contribuiu para o entendimento mais profundo das complexas dinâmicas envolvidas, mas também exemplificou sua abordagem singular e pessoal à pesquisa acadêmica. Demonstrando, portanto, como experiências individuais podem enriquecer e iluminar questões sociais e educacionais. Algo bastante enfatizado em sua entrevista no programa Trajetória, dirigido pelo professor Ricardo Alexino Ferreira, da Escola de Comunicações e Artes da USP.
Frente às câmeras, o professor Roberto ressaltou a necessidade da USP ampliar pesquisas envolvendo problemas sociais a partir das vivências dos próprios sujeitos. Segundo ele, isso poderia ser alcançado com o aumento do ingresso de pessoas das classes populares na pós-graduação.
Em 2001, Roberto da Silva concluiu seu doutorado na USP com a tese intitulada A eficácia sociopedagógica da pena de privação de liberdade”. No ano seguinte, em 2002, tornou-se professor da Faculdade de Educação e, posteriormente, obteve a livre-docência em 2009.
Sua entrada na Faculdade de Educação da USP não apenas marcou um ponto significativo em sua carreira, mas também desencadeou uma mobilização nas estruturas daquela unidade. A partir desse momento, a Faculdade passou a debater questões cruciais relacionadas à educação em abrigos e em sistemas prisionais, refletindo o compromisso do professor Roberto em direcionar o foco acadêmico para temas socialmente relevantes e desafiadores.
Essa extraordinária jornada de superação não apenas destaca sua resiliência, mas também evidencia sua dedicação à busca do conhecimento e à defesa inabalável dos direitos humanos.
Assim, a metáfora que diz que, após a morte, a pessoa se transforma em estrela, ganha uma dimensão especial ao pensar em nosso professor Roberto. Ele se tornou uma estrela brilhante, uma presença que continuará a iluminar e inspirar.
Para nós, seus alunos, além da saudade, permanece o legado deixado por esse mestre excepcional. Sua postura de permanente indignação e insurgência diante das arbitrariedades e desigualdades é um chamado constante para buscarmos a justiça, a igualdade e a educação como ferramentas de transformação social.
Desta forma, a estrela que ele se tornou é símbolo não apenas de sua trajetória, mas também do brilho duradouro de suas contribuições para a construção de um mundo mais justo.
Por fim, nossa gratidão ao Super Robert, como gostávamos de chamá-lo, carinhosamente, que nos deixa muita saudade. Mas, também, nos deixa orgulhosos por sua brilhante caminhada e agradecidos por ter implementado pontes para o nosso retorno à Terra-mãe. Uma contribuição, não apenas como educador, mas também como um construtor de conexões e pontes entre culturas.
E que possamos, portanto, seguir adiante, inspirados por sua dedicação e visão, mantendo viva a chama do conhecimento que ele tão apaixonadamente cultivou.
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