Após derrotas sucessivas nas últimas campanhas presidenciais, tudo indica que o PSDB vai lançar como candidato o atual governador do Estado, João Doria. Preocupado com o impacto da pandemia nas finanças do Estado, o governador encaminhou em agosto à Assembleia Legislativa o Projeto de Lei 529, segundo o qual o superávit financeiro de autarquias paulistas deveria ser transferido para o Tesouro Estadual no final do ano, incluindo-se o das universidades e o da Fapesp. Causou estranheza o projeto ser criado exatamente quando o governador insistentemente fazia menção à importância da ciência na condução das ações para enfrentar a pandemia. Após pressão da comunidade científica e com o apoio de diversos atores, o projeto foi reformulado e o confisco de verbas das universidades e da Fapesp não se concretizou.
O PL 529 é uma demonstração inequívoca de que a gestão Doria entende a alocação de recursos para a ciência como um gasto, e não como investimento para o bem-estar da sociedade. Talvez esta visão míope sobre o papel da ciência não seja exclusiva dos políticos. Por exemplo, a descoberta da existência do gás fosfina na atmosfera de Vênus é irrelevante para boa parcela da população. Qual seria o objetivo de investir bilhões de dólares para sondar os mistérios do Universo quando há tantos problemas em nosso planeta? A resposta à questão não se restringe à busca de nossas origens, mas também aos novos conhecimentos produzidos nesta jornada. Muitas das tecnologias desenvolvidas pela Nasa em seus projetos têm sido utilizadas em nosso dia-a-dia. Exemplos incluem áreas tão diversas quanto a aviação, novos materiais, saúde, comunicação e sensores. A pesquisa aplicada somente floresce com o suporte da pesquisa básica, ou seja, ambas são as faces de uma mesma moeda.
A ciência em São Paulo é fortemente financiada pela Fapesp, instituição que recebe, por norma constitucional, 1% da arrecadação do Estado. A maior parcela dos recursos é investida em pesquisa básica, conduzida por alunos e pesquisadores comprometidos com elevados padrões científicos. Estes recebem bolsas para o desenvolvimento de projetos que podem demorar anos para serem concluídos. A formação de recursos humanos altamente qualificados e a produção de conhecimento de impacto são alguns dos resultados deste investimento. Mas a Fapesp não investe somente em ciência básica, e o apoio a pequenas empresas tem sido crescente nos últimos anos, com geração de inovação disruptiva de elevado interesse para o Estado. Sendo uma agência de fomento extremamente criteriosa e responsável, a Fapesp depende de aportes financeiros regulares e de um fundo de reserva para momentos de crises cambiais e desacelerações econômicas. A despeito da magnitude da crise econômica, cortes lineares de recursos não são racionais, pois somente com base em normas previsíveis uma agência de fomento à pesquisa pode fazer planejamentos de longo prazo. A ciência não pode ser comparada a uma obra que, em muitos casos, pode ser paralisada.
No cenário acima descrito, causou surpresa o governo ter incluído a Fapesp em novo Projeto de Lei encaminhado à Assembleia Legislativa (PL 627). De acordo com o Anexo IX do documento, o orçamento da Fapesp terá uma redução de 30%, o que significa a interrupção de projetos já contratados e uma escassez de recursos para a pesquisa nunca vista em São Paulo. O governador informou recentemente que não haverá aplicação da Desvinculação da Receita Orçamentária de Estados e Municípios (DREM) nos repasses feitos pelo tesouro estadual à Fapesp. Todavia, o projeto foi encaminhado à Assembleia Legislativa sem modificação, ou seja, apesar da promessa, as ameaças à Fapesp continuam válidas. Talvez o governador não compreenda bem o papel da ciência para o desenvolvimento da sociedade, razão pela qual a mobilização em prol da Fapesp deve ser contínua, especialmente por segmentos da população que reconhecem a relevância da instituição.
Michael Faraday foi um grande cientista do início do século XIX. Existem rumores de que, após mostrar os resultados de alguns de seus experimentos a um político, este teria feito o seguinte comentário: “Qual é a utilidade disso?”. Conhecendo bem o que motivava os políticos, Faraday teria respondido: “Agora eu não sei, mas um dia o governo poderá taxar o invento”. Faraday fez importantes contribuições no campo da indução eletromagnética, fenômeno empregado para a geração de eletricidade nas usinas de energia. Se a relação entre pesquisa básica e aplicada era válida no século XIX, tal associação é ainda mais evidente nos tempos atuais e, em São Paulo, a Fapesp é a indutora deste processo. Uma economia pautada somente em commodities tem menor potencial de geração de riqueza e cria impactos sociais e ambientais, ao passo que o desenvolvimento tecnológico pode ser determinante para aumentar a competitividade do país.
Mário Covas e Franco Montoro foram fundadores do PSDB, partido que governa São Paulo desde 1995. Ambos provavelmente ficariam honrados em saber que descobertas científicas importantes têm sido feitas por pesquisas financiadas pela Fapesp. Também teriam orgulho da formação de capital humano capacitado para lidar com questões ainda não concebidas, como na atual pandemia. Aparentemente, o governador não compartilha dos ideais de Mário Covas e Franco Montoro, e parece ter uma noção bastante peculiar do papel da ciência para o desenvolvimento de São Paulo. Não é necessário que ele compreenda a eventual correlação entre a detecção de fosfina na atmosfera de Vênus e a presença de vida neste planeta, mas respeito à Constituição, à ciência e à inteligência da população são valores inestimáveis para qualquer político. Reconhecer um erro é uma virtude, insistir nele parece ser pouco inteligente.