O que ficou evidente foi o desinteresse da maioria da sociedade frente ao embate entre o governo e a comunidade científica. É justamente agora, no momento em que essa particular tempestade parece ter sido afastada, que se deve planejar a forma mais eficiente de aproximação do que cremos ser a contribuição da comunidade científica à sociedade paulista com a própria sociedade. Ou, como sugere o título deste artigo, chegou a hora de construirmos diques.
E nesta altura do texto é necessário falar de cinética, isto é, de tempo. A análise que segue se refere a ações que julgo urgentes. É claro que uma população que desde a pré-escola aprendeu o que é método científico, que sabe o que é fazer ciência e que não aceita argumentos de autoridade pode constituir uma sociedade onde a compreensão da importância de fazer ciência é intuitiva. Claro que é esse o caminho. Mas a realidade me impede de ver essa solução como uma ferramenta de curto prazo. Portanto nem irei mencioná-la aqui, quando se trata de prever a próxima onda de ataques à ciência, que pode vir antes do que se imagina.
Há décadas aprendi que a forma e o conteúdo de meu discurso deveriam se adequar ao público ao qual me dirijo. E que para manter a substância e o rigor dos argumentos, deveria dominar profundamente a matéria do discurso. Somente o profundo domínio do conteúdo permite modificar a forma do discurso. Levou bastante tempo para poder explicar a meus pais o que eu fazia com o suco de batata, e posso assegurar que nem na época, nem agora, sou um bom cozinheiro. Levou tempo para eu dominar enzimologia, e somente nessa condição pude mudar a forma do discurso sobre apirase de batata, uma enzima fundamental, objeto da minha primeira publicação.
Essa reflexão deve ser levada a sério pois a palavra sociedade, em muitos países, mas especialmente no Brasil, engloba tantos segmentos humanos que é impossível que um único discurso possa ser útil para transmitir uma ideia a todos os cidadãos que compõem a riqueza de segmentos desta sociedade.
Como bem sabem os que me conhecem, não sou versado em sociologia e nem de longe uso a palavra filosofia. A minha mensagem tende a ser curta, tento ser objetivo e muitas vezes consigo ser obscuro, quiçá por não dominar os conceitos que tento transmitir. Apesar disso sigo tentando, pois estar enganado e tentar de novo é parte do meu fazer como cientista.
Essa introdução me conduz a explorar alguns desses segmentos sociais que parecem estar insensíveis às contribuições que os cientistas deste estado têm aportado nas últimas décadas. Sei que serei repetitivo, pois em distintas ocasiões referi-me à mesma coisa. Mas creio que a experiência dos últimos meses bem poderia levar à formação de um grupo que, consciente e permanentemente, refletisse sobre formas de sensibilizar a sociedade e de não permitir que a corporação dos cientistas se sinta tão isolada quando atacada. Pois apesar do discurso sobre a importância da ciência para a saúde, foi justamente durante esta pandemia que a distância entre a comunidade científica e governantes mais se faz sentir, em São Paulo e no Brasil.
Como diria Jack the Ripper, vamos por partes.
O segmento bancário, que acaba de implantar o PIX, sabe que sem os formandos das universidades de pesquisa do estado de São Paulo nem pix, nem pox poderiam ser implantados. E apesar da dificuldade de convencer esse setor da importância do estabelecimento de centros de pesquisa pre-competitivos, com projetos de pesquisa internacionalmente competitivos em segurança da internet e gerenciamento de zilhões de dados, creio que os grandes bancos brasileiros, que em muitos aspectos são tecnologicamente competitivos, bem que deveriam ser um segmento social a ser explorado. O discurso para esse segmento somente pode ser elaborado por cientistas que dominem TI, Data Science, Internet Security e coisas conexas. A afirmação simples sobre a importância disso ou daquilo é, neste e em outros casos, inútil.
Outro segmento que antevejo como terreno fértil para o diálogo é constituído pelos pequenos empresários das cidades do interior onde existam campi das universidades públicas paulistas. É claro que para os cabeleireiros, os pequenos comerciantes, os donos das padarias, os empórios de bebidas, enfim todos aqueles que vivem da existência de uma população de estudantes de pós-graduação no entorno de um campus, o competente discurso sobre apirase, ainda que bem estruturado, não vai emocionar. Por outro lado, esse mesmo público entende muito melhor do que quem escreve este texto as consequências da redução pela metade de bolsas de estudo ou o fechamento de uma faculdade por razões orçamentárias.
Nessas mesmas cidades do interior paulista, o prefeito pode se sensibilizar com discursos similares aos que emocionaram os padeiros, pois a economia da cidade depende em boa parte da existência de uma universidade que atrai gente do mundo inteiro.
Um outro segmento da sociedade que certamente entende a importância da ciência e, em particular das universidades e da Fapesp, é o conjunto de startups nascidas das universidades, ou as pequenas empresas financiadas pelos projetos PIPE da Fapesp. O discurso, de novo, deve ser diferente.
Quando me refiro ao conjunto AGRO, “tudo é agro”, não vou repetir aqui tudo o que já escrevi a respeito, mas, de novo o discurso deve ser diferente.
É de propósito que deixo um dos segmentos mais trágicos por último: os excluídos, os favelados, os que não tiveram oportunidade de desenvolver seu potencial, os que ganham um salário-mínimo por família. Para analisar a forma de chegar a esse segmento é necessário entendê-lo. Eu, além de sentir profunda repulsa pela permanência de tais iniquidades, reconheço que aqui as minhas propostas se desvanecem, por falta de compreensão.
Dentro do governo existe um outro segmento que é, talvez, o mais refratário a qualquer discurso relacionado à universidade ou ciência. Alguns são servidores públicos de alto coturno para os quais a ideia da vinculação orçamentária é anátema, e qualquer argumento a favor dessa manutenção é inaceitável. Esse particular segmento, que há muitas décadas circula pelo Palácio dos Bandeirantes, só é sensível à pressão, e em particular, à pressão econômica e/ou política. Nenhum discurso nosso irá emocioná-los. Essa pressão somente virá se alguns dos segmentos da sociedade mencionados acima se sensibilizarem com o nosso discurso. Que aliás de discurso não tem nada, são somente dados.
É por tudo isto que conclamo a uma junção de esforços, por mecanismos que sequer tenho claro, mas que poderiam se estruturar nos Institutos de Estudos Avançados das universidades paulistas. Um grupo de acadêmicos que, dominando seus saberes, se juntasse a acadêmicos da comunicação para formular um projeto social. Um diálogo capaz de retirar a comunidade acadêmica de seu isolamento, partes da sociedade de seu empobrecimento e quiçá empoderar outra parte da sociedade com conhecimento.