Trecho do filme Longe do Vietnã (1967), feito pelos cineastas Chris Marker, Alain Resnais, Jean-Luc Godard e Joris Ivens
Nicolau Bruno de Almeida – Foto: Arquivo pessoal
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Maio de 68 não acontece como uma geração espontânea nem como um acidente natural. A história oficial o apresenta como um momento isolado na história, porém, o que se observa é que foram anos de luta contra o colonialismo e contra o capitalismo que antecederam aqueles breves meses de insurreição popular.
Se, por um lado, se propaga uma versão que enfatiza os acontecimentos de Maio como uma revolução de costumes, de cunho eminentemente cultural, por outro, o que demonstra a criação cultural da época é justamente o oposto. As obras culturais eram tudo, menos “apenas culturais”. Todas testemunham justamente a interdependência entre cultura e política, ou poderíamos dizer, que naquele momento, cultura e política eram inseparáveis.
O cinema francês particularmente é uma testemunha privilegiada dessa trajetória. No entanto, esse amadurecimento político dos cineastas data de engajamentos ainda anteriores a 68. Três vagas anticoloniais são determinantes para as gerações francesas dos sessenta. As mobilizações contra a guerra na Argélia, a guerra no Vietnã e em solidariedade com a Revolução Cubana e com as guerrilhas da América Latina.
Ainda no começo dos anos 50, existem diversos cineastas que se aliam aos movimentos da negritude, como Chris Marker e Alain Resnais, que fazem o filme As estátuas morrem também (1953), que nasce por encomenda de Alioune Diop, editor chefe da revista Présence Africaine. Também Renée Vautier, um cineasta anticolonialista, filma as lutas da Frente de Libertação Nacional, durante a guerra na Argélia.
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Em 1961, ocorre, em plena Paris, o massacre de 17 de outubro. Trinta mil argelinos marcharam sendo brutalmente atacados pela polícia francesa, o que resultou na morte de centenas de argelinos que eram jogados no Rio Sena para ocultar os corpos. Jacques Panijel registra os sobreviventes num filme que ficou 50 anos proscrito e que era exibido clandestinamente, muitas vezes atacado também pela polícia. Outro caso importante é o delicado filme Tenho oito anos (1962), de Yann Le Masson e Olga Poliakov, com a sobreposição de desenhos de crianças de guerrilheiros do FLN mortos e torturados.
Já em 1959, com a eclosão da Revolução Cubana, muitos foram os cineastas que passaram pela ilha, construindo fortes laços de solidariedade e intercâmbio. Armand Gatti, Chris Marker, Agnès Vardá entre tantos outros realizaram filmes por lá, junto ao recém-criado ICAIC bastião do Nuevo cine cubano.
Durante os meses de maio a junho, toda a vida profissional cinematográfica é interrompida, todos os filmes em produção têm seus dias de filmagem cancelados pela mobilização da greve dos trabalhadores.
Por todo o mundo o cinema tomava posição. As novas gerações cineclubistas, de revistas de crítica, ou seja, um imaginário político que se erguia em luta contra as estruturas tradicionais do cinema. A primeira manifestação de 1968, na França, foi de cineastas, críticos, cineclubistas e cinéfilos, na chamada “Batalha da cinemateca”. Em fevereiro de 1968, o Centro Nacional de Cinematografia demitia da direção artística e técnica da cinemateca francesa Henri Langlois, fundador e idealizador daquela instituição. Depois de tornar-se um escândalo nacional e internacional, com o apoio de cineastas do mundo inteiro a Langlois, em 14 de fevereiro, três mil pessoas fazem uma manifestação saindo da citadela Langlois e ocorrem confrontos entre manifestantes e a polícia.
Ao mesmo tempo, se dava uma aproximação de cineastas com o movimento operário. Já em 1967 a greve da Rhodia, em Besançon, havia aproximado um núcleo de cineastas como Chris Marker, Alain Resnais, Jean-Luc Godard, Joris Ivens, entre outros. O movimento operário reivindicava a construção de uma outra cultura feita pelos operários em luta. Assim surge o Grupo Medvedkine, formado a partir de um seminário sobre política e estética realizado num centro cultural ligado à CGT. Essa mesma rede de cineastas se envolve também na realização do filme Longe do Vietnã (1967), que é realizado em assembleia por mais de 300 artistas e técnicos que fazem de forma militante e autogestionária um filme em solidariedade ao povo vietnamita e pelo fim da guerra.
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Por outro lado, nos embriões do movimento estudantil uma rede internacional entre os países mais próximos havia se estabelecido, distribuindo filmes que noticiavam as lutas ao redor do mundo, inclusive para burlar os estratagemas da censura francesa. De tal forma que, quando, em maio, se erguem as barricadas dos estudantes no centro da cidade, a categoria cinematográfica já está de antemão bastante mobilizada. Na primeira semana seguem-se ocupações das escolas de cinema e de arte, assim como se constituem em assembleia os Estados Gerais do Cinema. Mais de três mil trabalhadores, estudantes de diversos setores do cinema se organizam numa assembleia que vai durar dias tirando alguns princípios que incluem: “destruição dos monopólios”, “autogestão a fim de lutar contra os mandarinatos e as burocracias esclerosadas”, “abolição da censura”, entre outros pontos. Durantes os meses de maio a junho, toda a vida profissional cinematográfica é interrompida, todos os filmes em produção têm seus dias de filmagem cancelados pela mobilização da greve dos trabalhadores. Os estúdios são ocupados pelos trabalhadores. Ao mesmo tempo, os Estados Gerais do Cinema iniciam uma produção paralela que se organiza na criação de filmes de intervenção, chamados cine-panfletos, realizados com materiais de película que são recuperados dos laboratórios. A ORTF (Organização de Rádio e Televisão Francesa) é atingida por uma greve parcial, assim como é interrompido o Festival de Cannes, passagem, em geral, mais comentada do período.
Também é significativa a trajetória de Jean-Luc Godard, que, entre 66 e 68 realiza a trilogia de filmes contra a guerra no Vietnã. Depois, diante da eclosão de 68, Godard se engaja de maneira radical na militância e nos acontecimentos políticos, criando um coletivo de cinema que vai se chamar Grupo Dziga Vertov, cujo objetivo era buscar mais que fazer “filmes políticos”, mas, como diziam: “fazer politicamente filmes políticos”. Ou seja, para eles, não bastava reinventar o cinema com a abordagem de temas e conteúdos de esquerda, mas, ao contrário, era necessário reinventar a forma cinematográfica para poder alterar também o processo de produção tradicional de filmes na época.
Como os próprios diziam: “A luta continua sob dois fronts: no interior da cinematografia francesa, por uma ação dos técnicos e cineastas contra os monopólios financeiros, os métodos de trabalho e lucro, e contra os abusos e ingerências do Estado; na margem de todo este sistema e contra ele, pela constituição de um cinema político, suscitando novos meios e novas redes e novos espectadores. Dessa verdadeira revolução, nós ainda voltaremos a falar” (Cahiers du cinéma 1968/out.). Estas experiências formam o caldo que vai gerar ainda uns dez anos de produção cinematográfica engajada, seja na solidariedade com as lutas na América Latina ou com o movimento operário, anti-homofobia, antirracista e anti-xenofóbico. A produção do cinema militante francês destas décadas e ainda mais particularmente o fenômeno dos Estados Gerais do Cinema serão um marco incontornável sobre as possibilidades que os cineastas, trabalhadores, artistas, em seus vários setores, podem vislumbrar em novas formas de organização. Mas também apresentam as tarefas históricas que surgem para o cinema no meio de um período revolucionário.
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