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A incapacidade estrutural das instituições de representação na canalização de demandas sociais e pressões culturais é o centro do problema. Essas reivindicações são expressões de processos de modernização, em que narrativas de inclusão política e ampliação das condições de representação tornam-se espécies de lugares-comuns. As ideias e a realidade não coincidem, e o problema é justamente quando as ideias reivindicam mais do que a realidade consegue abarcar. Por um lado, a ascensão do anti-intelectualismo, como um ataque político contra instituições do establishment (universidades, partidos e governo) e seu mainstream “feudal”, “arcaico” ou “corporativista”, é uma expressão cultural dessa situação, uma vez que o “bota-abaixo” deriva de um juízo rasteiro que condiciona as dicotomias sociais a um antagonismo estreito. Por outro lado, os discursos anti-establishment emergem da crise de representação e da desconfiança política como problemas endógenos nos sistemas democráticos.
O movimento, contudo, não é apenas destrutivo: como uma tensão dialética, ele produz formas de representação política elaboradas junto a novos sujeitos sociais. Esse momento liminar, de uma crise de representação à formação de engajamento público, como afirma Francisco Panizza, permite o reconhecimento de atores junto a grupos excluídos dos potenciais de representação em função de critérios de classe, etnia ou origem regional. Emergem, nesse cenário, processos de subjetivação fundamentados em novas formas de ação coletiva e de integração social a partir de narrativas coesas sobre o povo. Em julho de 2014, quando Viktor Orbán expressou o propósito de tornar a Hungria um “Estado iliberal”, ele propôs algo além de uma mera reação política à crise financeira de 2008. Esse tipo de resposta iliberal à democracia liberal, circulando aqui e ali no espectro ideológico, implica a produção de um espaço político enraizado em bases nacionais, na etnia e em contextos tradicionalistas de valores morais. Uma contra-narrativa diante das inseguranças dos processos de desterritorialização da razão neoliberal, então, ganha forma.
Como descrevem Max Horkheimer e Theodor Adorno, as promessas de emancipação e de democratização da modernidade caminham de mãos dadas com novas opressões, de modo que sociedades liberais e democráticas tendem a se tornar mais autoritárias em seu caráter, tendo em vista a saturação tecnocrática e burocrática de suas estruturas. Esse problema retroalimenta oposições autocráticas que atropelam as promessas de liberdade à luz do sobrepeso das restrições técnico-burocráticas da vida moderna. Se estão corretos os pressupostos normativos da teoria de Jürgen Habermas sobre a esfera pública (baseada na imprensa e nas mídias) e sobre seu potencial democratizante junto à racionalidade do debate público, igualmente importante é a consideração de que a difusão de estruturas comunicativas também torna a sociedade mais tensionada pela visibilidade da exclusão e dos descontentamentos, produzindo novos antagonismos. Nos anos 1990, as discussões sobre o “populismo telecrático” (Bernard Stiegler) e o “neo-populismo” dos governos tecnocráticos na América Latina e na Europa Oriental (com os trabalhos de Kenneth Roberts, Carlos de la Torre e Kurt Weyland) destacavam o papel da comunicação de massa em cenários populistas. A difusão das novas mídias a partir dos anos 2000, contudo, expandiu o problema à luz de grandes plataformas de mobilização social e politização de sensibilidades no Twitter, Facebook e WhatsApp.
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Já na década de 1930, os teóricos da Escola de Frankfurt sugeriam que a ideologia de um contato imediato entre o sistema político e o povo é subjacente ao fortalecimento de um decisionismo proveniente do topo da hierarquia política
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Já na década de 1930, os teóricos da Escola de Frankfurt sugeriam que a ideologia de um contato imediato entre o sistema político e o povo é subjacente ao fortalecimento de um decisionismo proveniente do topo da hierarquia política. Sob a retórica de unidade e autenticidade, emerge uma realidade de administração total da população e do território em uma política de hegemonia que pretende unificar o descontentamento e simplificar as diferenças por meio de mecanismos de poder (tais como políticas de “tolerância zero” e formas de interpelação moral). Deslizes autoritários, então, não são apenas astúcias da razão política, tampouco espasmos episódicos. Eles são, antes, a própria racionalidade da nova ordem de coisas.
A ascensão do populismo de extrema-direita nos Estados Unidos distende a polarização social ao alimentar o preconceito, estigmatizar as diferenças e apoiar assertivas autocráticas a respeito de procedimentos institucionais. No terreno social, o ímpeto populista dissemina violência simbólica e pulveriza ecos autoritários – ou seja, como uma micro-política, o populismo penetra nos interstícios da socialização e governa afetos por meio da radicalização, da polarização de práticas sociais e da segmentarização da população (no sentido de Gilles Deleuze e Félix Guattari). Fogo e fúria, então, não estão restritos às fronteiras nacionais: em países pós-socialistas como a Polônia, a mobilização do consentimento popular em campanhas anti-comunistas injeta na sociedade um componente ideológico mediante o esforço de tornar a nação livre de espectros de um passado que ainda rondam o presente.
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Talvez estejamos próximos (como jamais estivemos) do que Fareed Zakaria chamou de a ascensão das “democracias iliberais”
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O populismo emerge dialeticamente das próprias forças cosmopolitas da globalização capitalista e das estruturas de mercado, revertendo alguns polos progressistas da agenda neoliberal baseados no pluralismo institucional, em aspirações de fronteiras nacionais abertas e no multiculturalismo. Como uma questão discursiva, o populismo é um esforço de nomeação de atores coletivos, conferindo voz aos “excluídos” ou impondo a miragem de uma maioria homogênea. Trata-se, então, da construção de uma narrativa identitária baseada na reificação do espaço social e em dicotomias polarizadas (nós/eles, insiders/outsiders e elite/povo). Práticas, aliás, reforçadas pelo recurso à etnia, à nação e a artefatos morais (os corruptos, os degenerados, as virtudes da nação etc.). À luz desse contexto cultural, o líder incorpora as tensões. Adorno tem razão ao afirmar que a liderança personalista funciona como um corretivo para a crescente ossificação da burocracia do mundo burguês: a centralidade do líder, aqui, expressa uma conexão ordinária (baseada na linguagem rasteira, nos trejeitos marcados e nas presunções assertivas do comportamento forte) com o mundo da vida, exibindo a representação pessoal da liderança sob as iluminações das novas mídias.
Talvez estejamos próximos (como jamais estivemos) do que Fareed Zakaria chamou de a ascensão das “democracias iliberais”. Uma vez que as formas liberais implicam um sistema político baseado em eleições livres e limpas, no primado da lei, na separação de poderes, na proteção de liberdades de expressão e nas garantias de procedimentos institucionais, a potencial erosão de práticas constitucionais pode reforçar formas autocráticas de política (por exemplo, um governo baseado em decretos do Executivo que atropelam o Congresso). O problema não pode ser reduzido ao espectro de um retrocesso, tampouco a um estado patológico do sistema político: antes, trata-se de um movimento inscrito na ascensão de novas subjetividades e estruturas de ação coletiva. Mais do que um momento, essa é justamente a realidade que se materializa diante de nós.
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