Dialética do populismo

Felipe Ziotti Narita é pesquisador da USP
Jeremiah Morelock é sociólogo do Boston College (EUA)

 13/07/2018 - Publicado há 6 anos

Felipe Ziotti Narita – Foto: Arquivo Pessoal
Jeremiah Morelock – Foto: Arquivo Pessoal

A ascensão dos movimentos populistas no cenário político contemporâneo não é um processo circunstancial. Mais do que um líder carismático ou um apelo direto ao povo, o populismo é um fenômeno sociocultural amplo que mobiliza a atual imaginação política e produz engajamento subjetivo com o campo do político. O livro Critical Theory and Authoritarian Populism, que será publicado em agosto de 2018 pela editora da Universidade de Westminster na Inglaterra (volume editado por Jeremiah Morelock, contando com um longo capítulo assinado por nós), pretende justamente analisar essa questão.

A incapacidade estrutural das instituições de representação na canalização de demandas sociais e pressões culturais é o centro do problema. Essas reivindicações são expressões de processos de modernização, em que narrativas de inclusão política e ampliação das condições de representação tornam-se espécies de lugares-comuns. As ideias e a realidade não coincidem, e o problema é justamente quando as ideias reivindicam mais do que a realidade consegue abarcar. Por um lado, a ascensão do anti-intelectualismo, como um ataque político contra instituições do establishment (universidades, partidos e governo) e seu mainstream “feudal”, “arcaico” ou “corporativista”, é uma expressão cultural dessa situação, uma vez que o “bota-abaixo” deriva de um juízo rasteiro que condiciona as dicotomias sociais a um antagonismo estreito. Por outro lado, os discursos anti-establishment emergem da crise de representação e da desconfiança política como problemas endógenos nos sistemas democráticos.

O movimento, contudo, não é apenas destrutivo: como uma tensão dialética, ele produz formas de representação política elaboradas junto a novos sujeitos sociais. Esse momento liminar, de uma crise de representação à formação de engajamento público, como afirma Francisco Panizza, permite o reconhecimento de atores junto a grupos excluídos dos potenciais de representação em função de critérios de classe, etnia ou origem regional. Emergem, nesse cenário, processos de subjetivação fundamentados em novas formas de ação coletiva e de integração social a partir de narrativas coesas sobre o povo. Em julho de 2014, quando Viktor Orbán expressou o propósito de tornar a Hungria um “Estado iliberal”, ele propôs algo além de uma mera reação política à crise financeira de 2008. Esse tipo de resposta iliberal à democracia liberal, circulando aqui e ali no espectro ideológico, implica a produção de um espaço político enraizado em bases nacionais, na etnia e em contextos tradicionalistas de valores morais. Uma contra-narrativa diante das inseguranças dos processos de desterritorialização da razão neoliberal, então, ganha forma.

Como descrevem Max Horkheimer e Theodor Adorno, as promessas de emancipação e de democratização da modernidade caminham de mãos dadas com novas opressões, de modo que sociedades liberais e democráticas tendem a se tornar mais autoritárias em seu caráter, tendo em vista a saturação tecnocrática e burocrática de suas estruturas. Esse problema retroalimenta oposições autocráticas que atropelam as promessas de liberdade à luz do sobrepeso das restrições técnico-burocráticas da vida moderna. Se estão corretos os pressupostos normativos da teoria de Jürgen Habermas sobre a esfera pública (baseada na imprensa e nas mídias) e sobre seu potencial democratizante junto à racionalidade do debate público, igualmente importante é a consideração de que a difusão de estruturas comunicativas também torna a sociedade mais tensionada pela visibilidade da exclusão e dos descontentamentos, produzindo novos antagonismos. Nos anos 1990, as discussões sobre o “populismo telecrático” (Bernard Stiegler) e o “neo-populismo” dos governos tecnocráticos na América Latina e na Europa Oriental (com os trabalhos de Kenneth Roberts, Carlos de la Torre e Kurt Weyland) destacavam o papel da comunicação de massa em cenários populistas. A difusão das novas mídias a partir dos anos 2000, contudo, expandiu o problema à luz de grandes plataformas de mobilização social e politização de sensibilidades no Twitter, Facebook e WhatsApp.
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Já na década de 1930, os teóricos da Escola de Frankfurt sugeriam que a ideologia de um contato imediato entre o sistema político e o povo é subjacente ao fortalecimento de um decisionismo proveniente do topo da hierarquia política

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Já na década de 1930, os teóricos da Escola de Frankfurt sugeriam que a ideologia de um contato imediato entre o sistema político e o povo é subjacente ao fortalecimento de um decisionismo proveniente do topo da hierarquia política. Sob a retórica de unidade e autenticidade, emerge uma realidade de administração total da população e do território em uma política de hegemonia que pretende unificar o descontentamento e simplificar as diferenças por meio de mecanismos de poder (tais como políticas de “tolerância zero” e formas de interpelação moral). Deslizes autoritários, então, não são apenas astúcias da razão política, tampouco espasmos episódicos. Eles são, antes, a própria racionalidade da nova ordem de coisas.

A ascensão do populismo de extrema-direita nos Estados Unidos distende a polarização social ao alimentar o preconceito, estigmatizar as diferenças e apoiar assertivas autocráticas a respeito de procedimentos institucionais. No terreno social, o ímpeto populista dissemina violência simbólica e pulveriza ecos autoritários – ou seja, como uma micro-política, o populismo penetra nos interstícios da socialização e governa afetos por meio da radicalização, da polarização de práticas sociais e da segmentarização da população (no sentido de Gilles Deleuze e Félix Guattari). Fogo e fúria, então, não estão restritos às fronteiras nacionais: em países pós-socialistas como a Polônia, a mobilização do consentimento popular em campanhas anti-comunistas injeta na sociedade um componente ideológico mediante o esforço de tornar a nação livre de espectros de um passado que ainda rondam o presente.
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Talvez estejamos próximos (como jamais estivemos) do que Fareed Zakaria chamou de a ascensão das “democracias iliberais”

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O populismo emerge dialeticamente das próprias forças cosmopolitas da globalização capitalista e das estruturas de mercado, revertendo alguns polos progressistas da agenda neoliberal baseados no pluralismo institucional, em aspirações de fronteiras nacionais abertas e no multiculturalismo. Como uma questão discursiva, o populismo é um esforço de nomeação de atores coletivos, conferindo voz aos “excluídos” ou impondo a miragem de uma maioria homogênea. Trata-se, então, da construção de uma narrativa identitária baseada na reificação do espaço social e em dicotomias polarizadas (nós/eles, insiders/outsiders e elite/povo). Práticas, aliás, reforçadas pelo recurso à etnia, à nação e a artefatos morais (os corruptos, os degenerados, as virtudes da nação etc.). À luz desse contexto cultural, o líder incorpora as tensões. Adorno tem razão ao afirmar que a liderança personalista funciona como um corretivo para a crescente ossificação da burocracia do mundo burguês: a centralidade do líder, aqui, expressa uma conexão ordinária (baseada na linguagem rasteira, nos trejeitos marcados e nas presunções assertivas do comportamento forte) com o mundo da vida, exibindo a representação pessoal da liderança sob as iluminações das novas mídias.

Talvez estejamos próximos (como jamais estivemos) do que Fareed Zakaria chamou de a ascensão das “democracias iliberais”. Uma vez que as formas liberais implicam um sistema político baseado em eleições livres e limpas, no primado da lei, na separação de poderes, na proteção de liberdades de expressão e nas garantias de procedimentos institucionais, a potencial erosão de práticas constitucionais pode reforçar formas autocráticas de política (por exemplo, um governo baseado em decretos do Executivo que atropelam o Congresso). O problema não pode ser reduzido ao espectro de um retrocesso, tampouco a um estado patológico do sistema político: antes, trata-se de um movimento inscrito na ascensão de novas subjetividades e estruturas de ação coletiva. Mais do que um momento, essa é justamente a realidade que se materializa diante de nós.


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