Dalmo de Abreu Dallari – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Como acadêmicos e membros de uma sociedade civil, interagimos com uma gama imensa de pessoas, com interesses muitas vezes diversos dos nossos. Esses relacionamentos, em ambientes de trabalho, são realizados com a finalidade de produzir, e sem esse perfil não há instituição que evolua. Terminado o trabalho, esses grupos se dissolvem, continuando cada qual sua vida. É o lado utilitarista, nato no ser humano, necessário, mas ultimamente exacerbado, que nos leva a um individualismo e egoísmo doentios. É a sobrevivência a qualquer custo, em ambientes cada vez mais competitivos e hostis. É doença social, certamente, degradando conceitos morais, com todas as consequências que diariamente observamos. O que há de pior na sociedade ultrapassa, e muito, o que há de melhor.
Filósofos, como Nietzsche, Hobbes e Maquiavel, tentaram nos convencer de que se tratava de evolução darwiniana do mais forte. Mas esqueceram-se da consciência kantiana, que nos diferencia de outros seres vivos, valor fundamental que está em baixa nos últimos tempos. Dizem esses pensadores que, com escrúpulos, ninguém comanda. O lado humano foi, e está, sendo relegado ao último dos planos, tornando-nos cada vez mais subdesenvolvidos, decadentes. Não há espaço para o interesse dos outros.
Em minha já longa vida tive e tenho a saudável presença de gigantes, que contrariaram essa maneira de pensar. São, e foram, uma minoria nas diversas sociedades humanas, derrotados com frequência, por não empregarem métodos imorais em suas disputas, ensinando-nos que as vitórias devem ocorrer pelos méritos. Apesar de serem poucos, foram, e são os alicerces mais sólidos, que nos mantém eretos, acreditando, com otimismo, não permitindo que a desesperança prevaleça. Acrescentaram, somaram, educaram, polindo parâmetros de vida, determinando enormes evoluções intelectuais em nós. Enfim, pregaram a evolução saudável, conseguindo aliar intelecto e moralidade. Vivem, e viveram, para construir, e não destruir. Nomes como Dalmo de Abreu Dallari, Celso Antônio Bandeira de Mello, e Fabio Konder Comparato nos fizeram sermos mais. Muito mais, muito melhores. Amigos fraternos, que tornaram nossas vidas melhores. Humanistas, em sua mais pura definição, portadores de uma honestidade intelectual indiscutível, não se curvando perante violência, poder ou dinheiro.
Dalmo nos deixou fisicamente há pouco tempo, mas seu legado é eterno. Eu, e minha família, nos frequentamos assiduamente, tendo a companhia de seu porto seguro, Sueli, uma intelectual notável, e um bom vinho. Nossas conversas eram muito diversas, de filosofia a política, de música a vinhos, de história a geografia, com um nível de informação impressionante. O senso crítico construtivo estava sempre presente, independentemente do assunto. Certa vez, estava sendo tocada uma música de fundo, que eu ouvia desde criança com meu pai, mas que era muito pouco conhecida. Era a Procissão de Sardar, do caucasiano Ippolitov-Ivanov. Questionei-o, e ele descreveu toda a obra, com erudição invejável.
Por mais de 40 anos tivemos essa vivência, mas fica a sensação de não ter aproveitado mais a sua presença, a sua escola de vida. Formou e era conselheiro de juristas em todos os níveis. Sua casa era um confessionário, sempre orientando os que o procuravam, que eram muitos, dos mais variados segmentos. O casal ajudou a educar meus filhos desde tenra idade. Como disseram, tristes mas orgulhosos, “o legado fica plantado na semente da educação. Resistiu, de forma íntegra, o pior que um ser humano pode fazer a outro. Deixou um mundo melhor, com esperança”.
Como seu médico por mais de 40 anos, assisti seu lado estoico nas horas de sofrimento. Não se curvava à dor. Figuras da sociedade jurídica, política e acadêmica o tinham como conselheiro maior, buscando orientações para seus problemas. A sabedoria se atinge pelo caminho da humildade, e todos eram recebidos. A soberba nunca se aproximou dele, nem o ódio, apesar de ter sido muito maltratado no regime militar. Foi notificado dos autores de seu sofrimento, e não manifestou mágoa. Como professor titular e diretor da Faculdade de Direito da USP, desenvolveu gestões invejáveis. Com justiça, recebeu o título de Professor Emérito, em uma cerimônia inesquecível.
Impressiona o número de discípulos que formou. A Academia era sua segunda casa. Sua ambição sempre foi intelectual, e não material. De indígenas a presidentes e ministros, de religiosos a empresários, dialogava, compreendia, e orientava, com respeito. É possível avaliar o mérito desse ser humano incomum?
Nosso país tem condições de evoluir para o primeiríssimo mundo. Nossa sociedade é fértil. Se soubermos utilizar os recursos humanos construtivos, derrubando barreiras corporativas, nosso futuro será melhor. Se nosso meio criou Dalmo de Abreu Dallari, Celso Antônio Bandeira de Mello e Fabio Konder Comparato, devemos ter esperança. Devemos ter orgulho de tê-los em nossa sociedade, servindo de exemplos para todos.