Conto no canto do norte: apontamentos sobre a Amazônia brasileira e seus encantos

Por Josué Santos, doutorando da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP

 15/01/2024 - Publicado há 6 meses
Josué Santos – Foto: Arquivo pessoal
A Amazônia é uma região geográfica que está inserida nas seguintes nações: Brasil, Peru, Colômbia, Bolívia, Venezuela, Guiana, Suriname, Equador e Guiana Francesa. No Brasil, seu bioma está, predominantemente, no Estado do Amazonas, com sua floresta/selva equatorial, de clima tropical.

Existe ainda um marcador político no Brasil que identifica a Amazônia como área de interesse comercial, geográfico-espacial, ambiental e territorial, ou seja, muito além das florestas, chamado de “Amazônia Legal”, que inclui os Estados do Pará, Acre, Amazonas, Rondônia, Amapá, Mato Grosso, Roraima, Tocantins e Maranhão, em uma área que abrange cerca de cinco milhões de quilômetros quadrados.

Essa é uma definição simples e resumida do marcador geográfico, mas será que a Amazônia é somente um território, uma floresta, uma região específica no globo? O que é, ou melhor dizendo, o que são, as Amazônias?

Sim, escrevo Amazônias desse modo, no plural, por muitos motivos. Primeiro, por eu ser um amazônida, nascido em terra indígena, filho de pai ribeirinho, morador de Roraima, no norte mais extremo do Brasil, estive envolvido ao longo da vida em uma encruzilhada cultural com diversos caminhos e possibilidades linguísticas, culinárias, esotéricas, cosmológicas, simbólicas e interculturais. Sempre vivi, como aponta bem o linguista Roland Walter, um processo de mobilidade cultural: uma sempre complexa construção de identidade no limiar entre culturas — povos indígenas, não indígenas, ribeirinhos, quilombolas, e também de outras nacionalidades, considerando que Roraima é um estado de tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana.

Segundo, que não posso limitar a Amazônia ao seu aspecto territorial, o de ser uma grande floresta. Na verdade, aqui também posso utilizar o plural e identificá-la como florestas, considerando que cada lugar na floresta amazônica é um mundo a ser relevado: rios e igarapés, árvores e montanhas, fauna e flora, quilombos e densas áreas ainda desconhecidas, zonas urbanas e seus prédios, trânsitos e poluição, enfim. Ao fazer o movimento de falar da Amazônia apenas como sendo uma selva verde, reduzo sua dimensão a um aspecto muito específico do que realmente ela é.

Terceiro, pela questão de sua diversidade cultural. Falar da Amazônia que cobre o Estado de Roraima é falar dos lavrados, dos cavalos selvagens correndo soltos pelo lavrado, das comunidades indígenas que vivem próximo da cidade e habitam o entrelugar que surge da dinâmica entre a vida no campo e a vida na cidade. Falar da Amazônia do Estado do Amazonas é perceber que as divisões que fazemos das matas com a vida urbana só existem na nossa cabeça: o verde coabita a cidade e a cidade deixa-se esverdear pelas veredas das matas, marcando assim sua identidade com o verde da mãe natureza. Falar da Amazônia paraense, por exemplo, é falar dos povos ribeirinhos, da produção do açaí, do peixe pescado que alimenta as pessoas no Ver-o-peso (um grande mercado popular na cidade de Belém, PA). Cada espaço é constituído por sua dinâmica, nos mostrando que o Brasil não possui uma única cultura, mas várias que interagem entre si simultaneamente. Logo, não posso afirmar que existe apenas uma Amazônia, mas várias em sua concepção.

Assim, a Amazônia é um conjunto de muitas coisas. Tem em suas entranhas diferentes povos, como indígenas (de várias etnias, idiomas e culturas específicas), não indígenas (nascidos nessa região, bem como migrantes de outros estados brasileiros), imigrantes (aqueles que vêm de fora e lá permanecem por um tempo específico ou sem prazo determinado), habitantes dos rios, ribeirinhos, que fazem de suas estradas, águas dos grandes rios, de seus carros, canoas, de sua proteína e carboidratos, caça e pesca, de seus processos educacionais, sobrevivência na floresta, agricultura, artesanato e oralidade na transmissão de suas histórias, experiências e saberes ancestrais.

A Amazônia é, então, cosmopolita. Um terreiro de muitas línguas e linguagens, muitas mensagens e significados, um emaranhado de enunciados que estão a todo tempo dialogando com o ambiente circundante.

Até aqui falei o que considero importante ao ponderar sobre o que é a Amazônia, agora tentarei fazer um caminho reverso ao dizer o que ela não é. Essa nação Amazônia não é apenas beleza, diversidade, cultura. Ela traz em sua história uma perseguição histórica em relação aos povos indígenas, um processo de colonização que apagou diversas histórias e etnias, ficando, nas que restaram, vozes de gerações ancestrais. Adentrando suas matas, é possível perceber a violência contra a natureza com o desmatamento em prol de lucros financeiros, bem como o drástico aumento do garimpo ilegal: a prática de explorar a terra em busca de suas riquezas, poluindo os rios, destruindo a terra, matando os povos tradicionais.

Ela tem sido alvo também de disputas no âmbito internacional devido à sua grande área e potenciais àqueles que visam lucros, exploração e comércio. Modestamente (e às vezes de forma mais explícita), governos e organizações reclamam direito à terra, tentando enviar a qualquer custo suas tropas oportunistas em forma de maquinários para extração de madeira, ouro, diamantes, animais silvestres e outras coisas. Fora de suas terras, os povos indígenas são vistos como exóticos, estranhos, como criaturas de outro planeta. A sociedade propaga, nem sempre oralmente, mas através de seus gestos, símbolos e outras formas de mensagens, seu discurso xenofóbico em relação aos povos originários do Brasil, seja utilizando acessórios indígenas, tão simbólicos e representativos à cultura, como cocar, penas e outro adereços, em época de carnaval e blocos de rua – como se uma vestimenta tão fundamental fosse uma fantasia alegórica –, seja de outras formas nem tão explícitas assim. Ainda de forma velada, as pessoas se referem aos indígenas como índios, muito embora esse termo tenha caído em desuso há muito tempo (o conceito de índio veio da frota de Pedro Álvares Cabral que, ao avistarem o Brasil quando estavam “a caminho das Índias”, mencionaram os povos indígenas como parecidos fenotipicamente com os povos da Índia, por isso o termo). A utilização desse termo nos reduzia a um povo parecido com outro, derivado de outro, não como detentor de uma cultura específica ou traços fenotípicos únicos. Por isso a ideia dessa diferenciação entre termos, mas isso é uma conversa para outro momento.

Diante de todo esse contexto, o que nos resta, então? É preciso reconhecer que a Amazônia não é apenas uma grande floresta cheia de bichos, árvores e “índios”, mas constitui uma nação que, no seio de sua diversidade, possui formas de ver o mundo, vários idiomas que interagem entre si, outras formas de linguagens de significar o mundo e uma imensidão cultural a ser conhecida. É preciso mudar os paradigmas que nos afetaram, enquanto humanos, ao longo do grande tempo, no sentido de preconceitos e estereótipos enraizados na sociedade de forma estrutural e que mancham a história da Amazônia com o sangue de seu povo. É preciso levar adiante palavras de denúncias de exploração e assédio ambiental e cultural, através de escritas densas e descrições profundas sobre a realidade cotidiana do que acontece no profundo das florestas, nas fronteiras do rural e urbano, no trânsito aéreo do tráfico de tesouros tropicais. Tal como aponta o xamã e líder indígena Yanomami Davi Kopenawa, que essas palavras, que trago aqui com amor sobre meu país Amazônia, mas ao mesmo tempo indignação por seus tristes e violentos ataques sofridos, se espalhem para bem longe, para serem realmente ouvidas. E, no exercício do ouvir, compreendidas, compartilhadas e acolhidas.

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