1964-1985, paz? Recordar é viver

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 01/04/2022 - Publicado há 2 anos
Janice Theodoro da Silva – Foto: Reprodução/Youtube

 

“Você sabia que durante a ditadura TODAS as músicas, TODOS os filmes e TODAS as novelas tinham que ser previamente submetidos ao Departamento de Censura? Você sabia que os jornais tinham censores nas redações decidindo o que podia ser publicado? Essa é a história.”
Luís Roberto Barroso, no Twitter (@LRobertoBarroso)

Os comandantes das forças armadas brasileiras publicaram um texto comemorativo da data 31 de março de 1964, dia do golpe civil-militar. Trata-se de um período em que o Estado brasileiro perseguiu, torturou e matou, desrespeitando os Direitos Humanos.

A memória é patrimônio dos brasileiros, patrimônio sinalizador dos erros cometidos no passado, lição a ser superada.

De 1964 a 1985 os brasileiros não escolhiam seu presidente e o terrorismo de Estado perseguia, torturava e matava os dissidentes políticos. Professores foram cassados, impedidos de ensinar, pesquisar e expor suas ideias.

A história pode ser contada olhando para a Universidade de São Paulo, onde a perseguição foi imensa. Os fatos estão contidos no relatório elaborado pela Comissão da Verdade da USP (11 volumes).

A comissão foi formada pelos professores Erney Felício Plessmann de Camargo (ICB), Janice Theodoro da Silva (FFLCH), Maria Hermínia Brandão Tavares de Almeida (FFLCH), Silvio Roberto Salinas (IF), Walter Coll (IQ) e presidida originalmente pelo professor Dalmo de Abreu Dallari (FD).

Capítulo I, 1964: Inquérito Policial Militar, IPM

Vamos aos fatos, com o cuidado de citar os nomes.

Foram atingidos por Inquérito Policial Militar (IPM), em 1964, os seguintes professores:

Na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras:
1. Professor Fernando Henrique Cardoso;
2. Professor João Cruz Costa;
3. Professor Florestan Fernandes;
4. Professor Mário Schenberg;
5. Professor Nuno Fidelino de Figueiredo.

Na Faculdade de Economia, Administração e Ciências Contábeis:
1. Professora Lenina Pomeranz;
2. Professor Mário Wagner;
3. Professor Paulo Singer.

Na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo:
1. Professor João Batista Vilanova Artigas;
2. Professor Abelardo Riedy de Souza.

Na Faculdade de Medicina:
1. Professor Erney Felício Plessmann de Camargo;
2. Professor Israel Nussenzveig;
3. Professor José Mario Taques Bittencourt;
4. Professor Júlio Pudles;
5. Professor Luiz Hildebrando Pereira da Silva;
6. Professor Luiz Rey;
7. Professor Michel P. Rabinovitch;
8. Professor Nelson Rodrigues dos Santos;
9. Professor Pedro Henrique Saldanha;
10. Professor Reynaldo Chiaverini;
11. Professor Thomas Maack.

Diferentemente do que ocorreu no Chile e na Argentina, uma especificidade da ditadura brasileira foi preservar um aparato institucional interessado em manter uma aparência de legalidade diante dos expurgos que pretendia efetuar e que, de fato, foram efetuados posteriormente.

Capítulo II, 1964, Ato Institucional n.1

Os inquéritos criaram o clima político necessário para que o então governador Ademar de Barros, em 10 de outubro de 1964, lançando mão do Ato Institucional no. 1, demitisse sete professores. São eles:

1. Professor assistente Erney Felício Plessmann de Camargo;
2. Professor assistente Júlio Pudles;
3. Professor assistente Luiz Hildebrando Pereira da Silva;
4. Médico assistente Luiz Rey;
5. Professor de Genética Pedro Henrique Saldanha;
6. Professor assistente Reynaldo Chiaverini;
7. Professor Thomas Maack.

Capítulo III, 1968: Ato Institucional n.5

Em 1968 a perseguição aumentou. O Ato Institucional n.5 excluiu da Universidade os seguintes professores e seu reitor, o médico Hélio Lourenço de Oliveira, homenageado pela Universidade em março de 2016:

“MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA
DECRETO DE 29 DE ABRIL DE 1969

O Presidente da República, no uso da atribuição que lhe conferem os §§ 1o e 2o do art. 6º, do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, resolve

APOSENTAR:

Nos cargos ou funções que ocupam na Universidade de São Paulo com os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de Serviço, ou rescindir os respectivos contratos, quando for o caso, dos seguintes servidores:

Professor Alberto de Carvalho da Silva – Médico
Professor Bento Paulo Almeida Ferraz Junior – Filósofo
Professor Caio Prado Júnior – Advogado/Historiador
Professora Elza Salvatori Berquó – Socióloga
Professora Emília Viotti da Costa – Historiadora
Professor Fernando Henrique Cardoso – Sociólogo
Professor Hélio Lourenço de Oliveira – Médico
Professor Isaías Raw – Médico
Professor Jean-Claude Bernardet – Cineasta
Professor Jon Andoni Vergareche Maitrejean – Arquiteto
Professor José Arthur Gianotti – Filósofo (Fundo DEOPS, DEOPS)
Professor Júlio Pudles (demitido em 1964, no IPM da Faculdade de Medicina)
Professor Luiz Hildebrando Pereira da Silva – Médico
Professor Luiz Rey (Médico do Hospital das Clínicas) – Médico
Professor Mário Schenberg – Físico
Octávio Ianni – Sociólogo
Professor Paulo Mendes da Rocha – Arquiteto
Professora Olga Baeta Henriques (Pesquisadora do Instituto Butantã)
Professora Paula Beiguelman – Socióloga
Professor Paulo Alpheu Monteiro Duarte
Paulo Israel Singer – Economista
Professor Pedro Calil Padis (Professor de Economia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara)
Professor Reynaldo Chiaverini (Médico do Hospital das Clínicas)
Professor Sebastião Baeta Henriques (Pesquisador do Instituto Butantã)

Brasília, 29 de abril de 1969; 148º da Independência e 81º da República.
A. COSTA E SILVA
Luis Antonio da Gama e Silva
Tarso Dutra”

(Diário Oficial da União, 30 de abril de 1969)

Capítulo IV: Mortos e desaparecidos

Dentre os 434 mortos, 47 deles tinham relação com a Universidade de São Paulo, ou seja, 10% do total de mortos e desaparecidos em todo o território nacional, número muito alto se for levado em conta que a comunidade da USP não era grande na época. Dentre os 47 casos citados, 39 eram alunos, seis eram professores e dois eram funcionários.

A maior parte dos mortos e desaparecidos, 23 deles, nasceu predominantemente no interior e litoral de São Paulo ou, em número menor, em outros Estados brasileiros.

Cada um dos jovens citados abaixo teve a sua vida interrompida e merece ser lembrado como participante da História do Brasil vinculada à USP. A Universidade de São Paulo foi berço de inúmeros projetos políticos e acadêmicos com profundas ambições de transformação, tanto da sociedade brasileira como da própria Universidade. Nem todos os projetos pressupunham a retomada de um Estado democrático, o que não justifica a prática, levada à frente pelo Estado brasileiro, de tortura, desaparecimento e morte dos envolvidos.

Capítulo V. Perseguição aos centros de pesquisa e às ideias

Respeitando a verdade dos fatos, com farta documentação, o Relatório da Comissão da Verdade USP apresenta provas sobre a perseguição a pesquisadores das universidades públicas do Estado de São Paulo. As denúncias contra o professor Oscar Sala (físico) foram feitas pelo funcionário da Reitoria Krikor Tcherkesian.

O documento denunciava as seguintes instituições: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e os Centros de Estudos Rurais e Urbanos.

Além das instituições, os seguintes intelectuais foram citados: Fréderic Mauro, Paul Israel Singer, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Michel Foucault, Antonio Barros de Ulhoa Cintra, Warwick Stevan Kerr, Alberto Carvalho da Silva, Oscar Sala, William Saad Hossne, Jayme Arcoverde de Albuquerque e Alberto Bononi.

O historiador Fréderic Mauro foi acusado de ter editado na França um livro sobre história do Brasil com críticas à “Revolução de 1964”. Já Paul Singer sofreu acusação por divulgar dados sobre a situação familiar, nível de vida, ocupação e rendimentos de trabalhadores do Estado de São Paulo. Maria Isaura Pereira de Queiroz foi acusada de difundir ideologia marxista em unidades universitárias e meio rural e Michel Foucault, por pronunciar-se em assembleia universitária por ocasião do assassinato de Vladimir Herzog. Além das denúncias nominais, o informe condenava o apoio financeiro da Fapesp a projetos de pesquisa científica com suposto propósito de “(…) deturpar fatos históricos”.

Se todos os nomes de pessoas e instituições citados por Krikor tivessem sido afastados ou expulsos – como ocorreu com o Departamento de Parasitologia da Faculdade de Medicina, logo depois do golpe civil-militar –, a pesquisa na Universidade teria se tornado inviável. Os 400 professores citados por Krikor como “marxistas infiltrados” e que, segundo ele, deveriam ser eliminados eram, na sua maioria, professores doutores com grande capacidade de pesquisa e titulação em suas áreas de especialidade.

A exclusão desses professores e a eliminação dos institutos de pesquisa arrolados no documento sobre o professor Oscar Sala representariam um golpe de morte para a pesquisa na Universidade de São Paulo. É importante lembrar que a Assessoria Especial de Segurança e Informação-AESI foi criada na gestão de Miguel Reale e que o comissionamento de Krikor foi produto da mesma gestão. Quanto ao funcionário da Reitoria, Krikor, existem denúncias contra ele em relatórios do próprio SNI.

Evidentemente não se trata de resumir num artigo todas as informações contidas no relatório elaborado pela Comissão da Verdade da USP. Trata-se apenas de lembrar os fatos ocorridos e como a jovem democracia brasileira deve ficar atenta evitando a repetição da tragédia.

Resumo da ópera: Em momento difícil por que passa a história brasileira, foi um alento ler a mensagem do ministro Luís Roberto Barroso. Foram 8.760 dias de violências até a chegada da luz, da Constituição brasileira. Quem viveu sabe como foi difícil ver passar, dia a dia.

Entre lembranças difíceis, Hannah Arendt surge como resposta iluminada:

“Não importa como pode ser feita a pergunta, se é o homem ou o mundo que corre perigo na crise atual, mas uma coisa é certa: a resposta que empurra o homem para o ponto central das preocupações do presente e que acha que deve modificá-lo, remediá-lo, é a política em seu sentido mais profundo”.


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