Rita Lee

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 12/05/2023 - Publicado há 1 ano

Rita Lee é sinônimo de irreverência. Doce irreverência.

Trata-se de arte complexa, uma mistura de fala atrevida com amorosidades insolentes.

A irreverência, à moda de Rita Lee, tem origem na crítica a si mesmo. A sua arte, a sua piada, deixava distante o sarcástico, a competição do tipo desmancha prazer, do outro. Seu atrevimento, cercado de menções ao baixo corporal, sugeria arranjo musical, fineza de espírito e civilidade.

O seu atrevimento tinha origens nas fraquezas, escrachos e doçuras humanas. Confissão feita em público: “Foi ciúmes, sim”. A música nasceu de um bilhete que ela escreveu para Roberto de Carvalho, e ele devolveu com a canção. Briga das boas!

“Desculpe o auê
Eu não queria magoar você
Foi ciúme, sim
Fiz greve de fome
Guerrilhas, motim, perdi a cabeça…”
(Rita Lee e Roberto de Carvalho)

A sua amorosidade, ético-estética, fazia da transgressão uma colorida cenografia capaz de exorcizar os moralismos (em moda na atualidade), um delicioso banho de espuma.

Ele, o banho, é necessário hoje, tão essencial como foi no passado. Muitos banhos de espuma são o imperativo do presente. Rita dizendo não para a política, fez a sua insolência falar alto, criticar devoções e submissões típica de sociedades autoritárias e machistas. De uma maneira provocadora, ultrapassou os interditos mantendo intacta a raiz das incertezas e das inseguranças (cantada em Desculpe o auê). Ela, sem perceber e cantando alto, em ritmo contagiante, iniciou uma revolução de costumes, a maior de todas. Nas palavras de Mônica Waldvogel, uma personagem por quem toda uma geração é devedora. Deixou de herança liberdade, crítica colorida à carrancuda realidade brasileira, liberdade nem sempre percebida como patrimônio, herança, pelos jovens na atualidade.

“Que tal nós dois numa banheira de espuma?
El cuerpo caliente, um dolce farniente
Sem culpa nenhuma
Fazendo massagem, relaxando a tensão
Em plena vagabundagem, com toda disposição
Falando muita bobagem, esfregando com água e sabão”
(Banho de Espuma, 1981 – Rita Lee e Roberto de Carvalho)

A transgressão em Rita tem como base o desejo, o gozo, sem medo de um perder-se no outro. É um ver, ouvir e tocar em ritmo pop, talvez latino como sugeriu Roberto de Carvalho, um aguçar dos ouvidos e dos sentidos, todos: “Vê se me dá o prazer de ter prazer contigo”.

“Lança, menina, lança todo esse perfume
Desbaratina, não dá pra ficar imune
Ao teu amor que tem cheiro de coisa maluca
Vem cá, meu bem, me descola um carinho
Eu sou neném, só sossego com beijinho
Vê se me dá o prazer de ter prazer comigo
Me aqueça

Me vira de ponta-cabeça
Me faz de gato e sapato
E me deixa de quatro no ato
Me enche de amor, de amor, oh”
(Lança Perfume, 1980 – Rita Lee e Roberto de Carvalho. Composta em 1979 e proibida pela ditadura)

O amor é revolucionário. Revolucionário e perigoso.

Cantando e distribuindo alegria, Rita e Roberto de Carvalho estimularam musicalmente o público a desnaturalizar os interditos como se pudessem, mediante uma batida eletrônica moderna, des-castrar os jovens dos anos de 1960, 1970, 1980… (mesmo os de esquerda). Ela elaborou canções com Roberto de Carvalho melodiosamente libertadoras contra um sistema coercitivo, instrumento de manutenção da “ordem” em tempos obscuros. Rita não se masculinizou, encantou. Cantou o sexo frágil, na luta, no rosa choque, na esquisitice. Afinal, mulher “Todo mês sangra”. Forte dizer o óbvio. Revolucionário sangrar todo mês, como manda a natureza. Fez política à moda pop, meio sem saber. Em seu livro enuncia o seu precoce feminismo amoroso:

“Uma escarrada na cara seria menos humilhante. Em vez de me atirar de joelhos, chorando e pedindo perdão por ter nascido mulher, fiz a silenciosa elegante. Me retirei da sala em clima dramático, fiz a mala, peguei Danny (a cadela) e adiós. No meio da estradinha da Cantareira, parei no acostamento e chorei, gritei, descabelei, xinguei feito louca abraçada a Danny, que colaborava com uivos e latidos”.

Dentre tantos músicos e cantores perseguidos pela ditadura, preferindo manter uma distância elegante dos políticos, Rita e Roberto de Carvalho foram artistas, sistematicamente censurados pela ditadura.

É um bom exercício perguntar por quê?

Hipótese: Amor e sexo, sexo e amor.

Proibido amar, sair do quadrado, ser livre? Perigoso provocar?

Não provoque
Não provoque
Por isso não provoque
Nas duas faces de Eva
A bela e a fera
Um certo sorriso
De quem nada quer
Sexo frágil
Não foge à luta
E nem só de cama
Vive a mulher
Por isso, não provoque
É cor de rosa choque
Não provoque
É cor de rosa choque
Não provoque
É cor de rosa choque
Por isso, não provoque
É cor de rosa choque
Mulher é bicho esquisito
Todo o mês sangra
Um sexto sentido
Maior que a razão
Gata borralheira
Você é princesa
Dondoca é uma espécie
Em extinção
Por isso, não provoque
É cor de rosa choque
Oh oh oh ooh
Não provoque
É cor de rosa choque
Não provoque
É cor de rosa choque
Por isso, não provoque
É cor de rosa choque

Rita entrou na USP em 1968 e, logo, partiu. Pedia para os amigos assinarem a lista de presença.

Pássaros gostam de cantar e voar.

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