Carolina e Janaína: a construção do afeto

Por Alecsandra Matias de Oliveira, professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) da Escola de Comunicações e Artes da USP

 13/03/2023 - Publicado há 1 ano

“Preta é a minha pele”.
Carolina Maria de Jesus

Vista como insubmissa, geniosa, explosiva e agressiva, mas também, terna e corajosa, Carolina Maria de Jesus, escritora, poetisa e dramaturga, sempre foi algo incômodo na “grande trajetória” da intelligentsia brasileira. Após um período de ostracismo, entre os anos de 1970 e 1980, sua vida e obra têm sido objeto de investigações no campo acadêmico desde os anos de 1990. E, hoje, tornou-se referência para novas abordagens que discutem gênero, racialidade e exclusão social.

Como uma mulher, negra e favelada violou os códigos da colonialidade no Brasil? São muitas as tentativas de resposta. Algumas interpretações insinuaram que seus escritos foram embuste do jornalista Audálio Dantas; outras a trataram com desdém e apontaram sua baixa escolaridade, suas incorreções ortográficas e suas rimas pobres; outras ainda, a viram como objeto exótico do imaginário colonial. Ela foi colocada como “cinderela negra” – numa história que não é nenhum conto de fadas.

Recentemente, ela foi muito celebrada, recebeu o título de doutora honoris causa pela UFRJ e teve a edição póstuma de sua poesia. Foi motivação para a mostra Um Brasil para os brasileiros, no Instituto Moreira Salles, entre 2021 e 2022. Existem ainda projetos editoriais, liderados por Vera Eunice de Jesus, filha de Carolina, pela escritora Conceição Evaristo e por outras pesquisadoras de sua obra, entre elas, Amanda Crispim, Fernanda Felisberto, Fernanda Miranda e Raffaella Fernandez. E fontes para essas investigações não faltam: até a morte, em 1977, Carolina produziu vasto material. Foram mais de 5 mil páginas manuscritas, inúmeros romances, poemas e peças teatrais.

Sob a perspectiva decolonial, ela foi comparada a personagens instigantes, como por exemplo, Arthur Bispo do Rosário, Frida Kahlo e tantos outros insurgentes. A já mencionada exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros, com curadoria de Hélio Menezes e Raquel Barreto, fez a interação entre literatura e artes visuais. Nesse diálogo, para além dos aspectos biográficos, a curadoria trouxe artistas e obras que tratavam do “Brasil de Carolina”.

Com concretude se mostrou a força atual da escritora, porém, quase uma década antes, uma série de trabalhos já nos trazia Carolina, de modo sensível, a partir da construção dos afetos – algo tão difícil de compreender em sua obra. A série Bonecas de Bitita, 2013, de Janaína Barros Silva Viana (São Paulo, 1979), artista visual, performer, pesquisadora e educadora, é uma das interpretações mais interessantes do “mundo de Carolina”. Vale dizer que já mencionei sobre o trabalho de Janaína Barros Silva Viana em dois momentos: nos artigos Mulheres, negras e perigosas e em Mulheres, negras e (ainda mais) perigosas – ambos publicados no Jornal da USP. Contudo, para o entendimento da união destas duas autoras negras, convido o leitor para uma breve reflexão sobre Carolina Maria de Jesus e, depois, sobre seu entrelaçamento com as obras de Janaína.

O ser mulher, negra, mãe e pobre e, acima de tudo, escritora – atributo de homens brancos e ricos – a transformou num problema para a elite nacional. Primeiro, porque ela não aceitou o “lugar dado às mulheres negras”, depois, porque não aceitou a condescendência usual da sociedade brasileira – a regra é clara: toda vez que uma voz excluída sobressai encontra espaço, porém, jamais legitimação. Seu reconhecimento no mundo público dos homens brancos seria como “uma licença democrática”. De fato, as temáticas envoltas por sua vida e obra extrapolaram os estudos literários, históricos, políticos e das artes visuais.

Seu livro Quarto de despejo: diário de uma favelada foi lançado pela Livraria Francisco Alves, em 19 de agosto de 1960 e editado oito vezes no mesmo ano. Foram mais de 70 mil exemplares vendidos em 12 meses, assim como em cinco anos, o livro foi traduzido para 14 idiomas em mais de 40 países. Quarto de despejo, sobretudo, colocou em xeque a visão romântica da favela – que segundo a autora, era o lugar destinado às coisas velhas e inúteis da casa; onde nordestinos fugidos da seca estavam; onde os pobres desempregados e miseráveis encontravam espaço, enfim, onde àqueles à margem da sociedade eram empurrados (a favela era, de fato, a margem). Na favela, os indivíduos eram “despejados” e entregues à própria sorte. Para ela, a “sala de visitas” eram os bairros urbanizados, com saneamento, água, luz e transporte público.

Ela atingiu a “sala de visitas” no livro Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961), no qual escreveu sobre sua a vida e a dos filhos, desde o lançamento de Quarto de despejo até 21 de setembro – dia em que assistiu ao espetáculo teatral baseado na sua primeira obra. Nas páginas de Casa de alvenaria, ela escreveu: “Agora eu falo e sou ouvida”. Este era o relato da ascensão social. No fundo, o livro contém uma ácida descrição do modelo socioeconômico brasileiro, na qual a autora “deu nome aos bois”. Ela culpou os governantes pela pobreza do povo (aqui cabe um #prontofalei). Em 1963, publicou Pedaços da fome e, logo em seguida, financiou seu quarto livro Provérbios.

Os três livros não atingiram os números de vendas do primeiro e, nesse ponto, alguns estudiosos evidenciam como a autora foi vítima de violência editorial e do mercado dominado por homens brancos. Parecia que o recorte de classe era o único aspecto que interessava na obra de Carolina – mas, para ela, sua criatividade não poderia ser restringida; não eram só os diários; ela queria poesia, romance, teatro e música. “O meu sonho é escrever! Responde o branco: ela é louca. O que as negras devem fazer […] É ir pro tanque lavar roupas” (Antologia pessoal, 1996). Para a ditadura militar, imposta, a partir de 1964, também não interessava qualquer imagem da miséria para além das fronteiras – o que tínhamos era o “país do futuro”.

Foram quase 20 anos de silêncio, quando Diário de Bitita foi publicado postumamente em 1982, na França, e, na sequência, em 1986, no Brasil. Nesses escritos, a autora contou sobre sua infância em Minas Gerais e, depois, no interior de São Paulo até a sua partida para a capital. Bitita tornou-se Carolina Maria de Jesus. Na escola, a menina conheceu sua identidade. Por dois anos, aprendeu a ler e escrever. Carolina não deixou de ser Bitita, mas ao percorrer as histórias de sua vida, demonstrou a necessidade de criar, recriar e reafirmar histórias para si – um exercício de “escrita de si”, isto é, uma forma de elaboração do mundo a partir de suas experiências pessoais – uma vivência escrita com afeto e, simultaneamente, com crueza.

De toda a sua obra, dos eventos e temas que envolvem Carolina, emergem os problemas que ela insiste em explicitar para a “elite intelectual brasileira”. Assim, as aproximações do seu repertório com as artes visuais e, especialmente com a atual cena brasileira, são vigorosas. Uma série de autores negros (as) – aqueles (as) de pele preta como a dela – tomam a imagem e as referências do “mundo de Carolina”.

E aqui, retorno a atenção para os trabalhos de Janaína Barros Silva Viana. Sua tese de doutoramento A invisível luz que projeta a sombra do agora: gênero, artefato e epistemologias na arte contemporânea brasileira de autoria negra, defendida em 2018, na Universidade de São Paulo, propôs o debate sobre aspectos da experimentação em artes visuais pautado no papel do autor e nos discursos traçados pelas relações de identidade e alteridade na arte atual. Seus estudos envolvem questões, tais como, epistemologias, etnia e gênero na arte brasileira contemporânea.

No início de sua produção artística, ela dedicou-se ao emprego do algodão, dos bordados, dos desenhos e da acrílica. Dessa pesquisa, surgiu uma série de retratos de mulheres negras, nos quais há um jogo entre corpo e fundo (ora, elas fundiam-se; ora se apartaram). Mais tarde, o tecido ainda presente tornou-se bidimensional e diferentes estampas eram sobrepostas, assim como a aplicação de pérolas falsas e palavras escritas a partir do bordado em fio de seda. Aparecem, então, os objetos invólucros – luvas, aventais, capas de liquidificador, panos de prato – que constroem uma poética do cotidiano doméstico, no qual a divisão sexual do trabalho nos induz aos corpos daquelas que, costumeiramente, usam esses objetos.

Porém, foi em 2013, com a série Bonecas de Bitita que as referências da infância de Carolina Maria de Jesus, relatadas em Diário de Bitita, interessavam à artista visual. São 10 trabalhos que evocam as origens e os lugares da escritora. São bonecas, mas olhem com mais acuidade, são marionetes sem cordas ou, ainda, o que é mais real, são bonecos-manequins articulados. Os materiais e as técnicas, como o bordado, os desenhos, os fios sintéticos, a costura aparente e as contas remetem à confecção manual doméstica. No texto da exposição Corpos silenciados, ocorrida em 2013, essa série é descrita como o “(…) um tempo de memória que mescla sua própria infância (…) e a infância e adolescência de uma mulher negra, Carolina de Jesus, a escritora”.

O corpo está no seu simulacro. As bonecas são travestidas por uma série de caracterizações socioculturais, como vestuários e adornos diversos. A referência estética está presente na aplicação de fios sintéticos lisos, como cabelos, na ênfase em seios, mãos e pés – elementos relacionados ao gênero e à etnia. Elas parecem soltas sobre o fundo estampado ou preenchido pelas texturas das rendas, nos dão a sensação de invasão do que é íntimo. Exponho aqui a fragilidade destas bonecas; a impermanência destes corpos vaidosos, frouxos e instáveis.

O traço identitário está no emprego das artes aplicadas e no título Bonecas de Bitita. O lugar de identidade está nesta produção de modo denso e nos dão o tom de tensionamento. Diversas jovens artistas negras empregam o bordado e a costura – no fundo, uma reminiscência da infância e da ancestralidade dessas autoras. Porém, a sensação de bricolagem também pode estar ligada à Carolina, uma vez que ao recolher objetos para sua sobrevivência, sendo catadora de papel e escrevendo em cadernos usados, ela nos leva para essa poética do que foi descartado – do devires-trapeiros. Notamos ainda, que nossa interlocução é com a menina Bitita que nos conta sobre suas descobertas e seus sentimentos de criança e adolescente negra. Geralmente, é criança que descobrimos que “somos de pele preta”.

Em entrevista, Janaína nos explica um pouco mais sobre sua referência em Carolina: [ela] “tem uma discussão sobre como produzimos nossos afetos, nossa inscrição no mundo. Por outro lado, quando falo em afeto, penso também em seu contraponto, que é o desamor”. Amor e desamor – afetos muitas vezes negados aos excluídos. Carolina jamais renunciou a seus desejos no mundo; encarou de frente esses res (sentimentos) – isso realmente, é inconveniente, quando teimam em desumanizar mulheres, negros e pobres. Talvez, seja por isso, que até hoje sirva de inspiração e campo aberto para novas pesquisas e novas proposições.

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