A panela de pressão foi historicamente uma precursora da máquina a vapor?
Primeiramente, cumpre notar que na história se observa a crescente automação do trabalho humano, buscando-se maior eficiência com o menor custo. As máquinas vieram a complementar e substituir o esforço físico, e posteriormente o esforço mental, embora a criatividade seja ainda um privilégio não transferível para máquinas.
A máquina a vapor é uma clara demonstração de que dificilmente ocorrem descobertas isoladas e produzidas por uma única mente brilhante – pelo contrário, as invenções representam um longo e lento processo de aperfeiçoamentos de ideias, por vezes ao longo de muitas gerações e acumulando contribuições de muitos povos. Por exemplo, Fílon de Bizâncio (século 2 a.C.) e Heron de Alexandria (século 1 d.C.) já descreviam uma série de aparelhos que usavam ar ou vapor quentes para obter trabalho mecânico. A tradução do livro de Heron sobre pneumática no século 16 despertou a curiosidade e inventividade de várias pessoas que pensaram em aproveitar a energia do vapor.
A partir dessa época, para o aquecimento, tanto nas oficinas metalúrgicas como no âmbito doméstico, consolidou-se a substituição da madeira pelo carvão, mais eficiente na produção de calor, de um ponto de vista energético. Como resultado, no século 17 se intensificaram as experiências com máquinas de combustão.
De maneira geral, neste século 17 foi também favorecido o desenvolvimento de diversos instrumentos de precisão, tanto para uso individual, quanto para prover a expansão industrial. Um cientista que se destacou neste assunto foi o matemático, físico e astrônomo holandês Christiaan Huygens (1629-1695). Sua fama foi sensivelmente aumentada com a invenção em 1657 do relógio de pêndulo, com mecanismo de escape, de grande precisão.
Em 1672 Huygens, que então dirigia a recém-criada Academia de Ciências de Paris, admitiu dois auxiliares para a pesquisa. Um deles foi o polímata alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), para quem deu aulas de matemática e que logo faria grandes avanços no cálculo infinitesimal e na dinâmica, e se tornou um dos mais famosos filósofos modernos. O outro era um médico francês, Denis Papin (1647-1712). Ambos trabalharam em conjunto, aperfeiçoando máquinas de vácuo propostas por Huygens, além de sua máquina térmica usando explosivo. Papin percebeu, entretanto, que seria mais eficiente trabalhar com vapor, ao invés de pólvora, para criar uma propulsão de forma ininterrupta.
Em 1672 houve uma mudança radical na política do rei francês Luís XIV, que começou com a invasão da Holanda pela França, com apoio da Inglaterra, e atingiu seriamente a Academia de Ciências de Paris, forçando um êxodo de cientistas protestantes a partir de 1675. Huygens enviou Papin para a Inglaterra com sua invenção de um relógio de bolso, também contando com mecanismo de escape, e uma recomendação para trabalhar com o cientista Robert Boyle na Real Sociedade Britânica (Royal Society).
Por volta de 1679 Papin deu um passo decisivo no controle de vapor a alta pressão ao inventar um dispositivo de cozinha, que chamou de “digestor”. Tratava-se de um tipo de panela de pressão que continha uma válvula de segurança, um grande avanço no controle de pressões muito maiores do que a da atmosfera. Escrevendo para Huygens, Papin declarou que seu objetivo imediato era aliviar a fome dos pobres e conseguir alimentos a partir de coisas que geralmente eram jogadas fora. Era o que acontecia com ossos, que depois de fervidos se tornam um caldo gelatinoso e nutritivo. Papin publicou em 1680 Um novo digestor ou máquina para amolecer ossos, incluindo uma descrição detalhada de sua fabricação e uso, contendo uma espécie de guia culinário. Com isto, a fervura dos ossos passava a ser feita em duas horas e meia, ao invés de 24 horas, com grande economia de tempo e de combustível. O digestor foi colocado à venda com sucesso, tornando seu inventor bem conhecido.
Em 1685 Luís XIV revogou o Edito de Nantes, que (teoricamente) protegia a liberdade religiosa e Papin, por não ser católico, mas protestante, não deveria definitivamente retornar para viver na França, tendo em 1687 se mudado para Marburg, estado de Hessen, no que seria a futura Alemanha. A partir de então, ele se consagrou ao aperfeiçoamento de máquinas a vapor e em 1690 publicou por meio de seu amigo Leibniz um artigo histórico em Acta Eruditorum, revista científica editada na cidade de Leipzig. Nesse artigo ele propunha usar a energia do vapor em expansão para operar um motor com pistão e cilindro, sugerindo que isto teria aplicação para impulsionar navios equipados com rodas de pás.
A colaboração entre Papin e Leibniz aumentou consideravelmente, levando a uma série de tentativas de implementar na prática esse projeto de barco a vapor. Para isso, vários aperfeiçoamentos foram introduzidos tanto no projeto da máquina quanto no do acoplamento desta à roda de pás, e Papin publicou em 1695 um resumo desse singular projeto, que teve circulação e grande repercussão na Inglaterra.
A realização prática desse invento está cercada de controvérsias, mas alguns estudiosos afirmam que, depois de vários testes, em 1707 Papin conseguiu finalizar a contento um projeto aperfeiçoado de máquina a vapor, empenhando-se então em conseguir acoplá-la a uma embarcação. Papin teria conseguido convencer o soberano do estado de Hessen a lhe dar licença para operar seu invento, descendo o Rio Fulda desde a cidade de Kassel até o Rio Weser, num percurso de 32 km. Apesar do sucesso da tentativa, Papin teria tido sua máquina destruída por barqueiros furiosos e temerosos de que essa máquina iria lhes roubar o ganha-pão. Não há certeza se o barco chegou a ser movido pela força do vapor, embora isto possa ter acontecido.
De volta a Londres, Papin escreveu à Real Sociedade Britânica, oferecendo seu projeto com detalhes, para demonstrar sua factibilidade. Pediu à Sociedade uma verba que lhe possibilitasse reconstruir sua máquina e equipar um novo barco a vapor, mas a oferta foi recusada pelo presidente perpétuo da Sociedade, Isaac Newton, que consultara Thomas Savery (1650-1715) sobre o assunto.
Ocorre que, após a publicação do trabalho de Papin em 1695, o Parlamento inglês havia concedido a Savery uma patente e a exclusividade na exploração de máquinas que usassem energia do fogo, e foi justamente Savery quem opinou que o projeto ofertado por Papin em 1708 era inviável, afirmando que o conjunto de cilindro e pistão não funcionaria.
Também importa lembrar que Isaac Newton se tornou um feroz opositor das concepções de Huygens (principalmente na teoria da luz e das cores) e igualmente, ou em maior grau ainda, de Leibniz, por conta de posições filosóficas sobre o funcionamento do Universo. De maneira simplificada e usando uma metáfora da época, o relógio mecânico de pêndulo, para Newton, este mundo é como um aparelho que vai gastando a corda e precisa que o seu Criador de tempos em tempos intervenha, dando mais corda. Para Leibniz, o Criador é tão sábio que fez um universo que se ajusta por si mesmo. Secundariamente, a briga se desenrolou em torno de disputas pela precedência de ideias ligadas ao cálculo infinitesimal. Não seria, portanto, de estranhar que a indiferença para com Papin fosse um produto desses conflitos pessoais, que se prolongariam por muito tempo por meio dos discípulos de parte a parte.
O restante da vida de Papin é nebuloso, pois ele ficou cada vez mais sem dinheiro e se queixando de que a Real Sociedade tinha se apropriado de várias invenções suas sem remunerá-lo. Ele desapareceu da vida pública sem deixar rastro, supondo-se que morreu em Londres em 1712, na pobreza total.
Curiosamente, nesse mesmo ano de 1712, repentinamente surgiu a notícia da construção e patente na Inglaterra de uma máquina a vapor, feita por outro inglês, Thomas Newcomen (1664-1729), após vencer o tempo da patente de Savery. Com relação à de Papin, a máquina de Newcomen era claramente inferior, pois estava limitada a trabalhar com a pressão atmosférica e o projeto tinha aplicação praticamente restrita ao esgotamento de água das minas de carvão. Além disso, Newcomen insistia em resfriar e aquecer o mesmo cilindro, desperdiçando grandes quantidades de vapor e consumindo muito carvão. No contexto referido anteriormente, percebe-se que houve uma clara preferência por um invento “inglês” com o beneplácito da Real Sociedade, em detrimento de um francês ligado a Leibniz.
Apenas várias décadas depois, inventores como James Watt (1736-1819) retomaram o assunto e as máquinas a vapor puderam ser utilizadas mais amplamente, como desejavam Papin e Leibniz.
A grande difusão dessas máquinas acelerou o domínio da burguesia sobre a nobreza e desempenhou um papel fundamental na evolução do capitalismo industrial.
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