No palco da cultura, cordel, xilogravura e repente têm status de protagonistas

Composto de 4.500 folhetos, acervo de literatura de cordel do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) é destaque em evento que reuniu cordelistas

 01/03/2016 - Publicado há 8 anos     Atualizado: 02/05/2016 as 15:10
Foto: Marcos Santos / USP Imagens
Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Composto de 4.500 folhetos, acervo de literatura de cordel – arte considerada patrimônio imaterial pelo Iphan – do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) é destaque em evento que reuniu cordelistas, repentistas e xilogravadores na USP

A – Ai como é duro viver
Nos Estados do Nordeste
Quando o nosso Pai Celeste
Não manda a nuvem chover.
É bem triste a gente ver
findar o mês de janeiro
depois findar fevereiro
e março também passar,
sem o inverno começar
no Nordeste brasileiro.

B – Berra o gado impaciente
reclamando o verde pasto,
desfigurado e arrasto,
com o olhar de penitente;
o fazendeiro, descrente,
um jeito não pode dar,
o sol ardente a queimar
e o vento forte soprando,
a gente fica pensando
que o mundo vai se acabar.

Os versos acima, do poema de cordel O ABC do Nordeste Flagelado, de Patativa do Assaré, compõem o rico acervo de cerca de 4.500 folhetos de cordel que o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) conserva. São panfletos, fotografias, registros sonoros, xilogravuras e matérias jornalísticas. Há também outros autores expressivos da literatura de cordel do Norte e Nordeste do Brasil, como Leandro Gomes de Barros (1865-1918), João Martins de Athayde (1880-1959), Natan Marreiro, Severino Borges Silva (1919-1991), Manoel Lopes (1907-2005) e Caetano Cosme da Silva, que ao longo dos anos formaram uma vasta produção na área.

Considerada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) do Ministério da Cultura um patrimônio imaterial, a literatura de cordel hoje é preservada como cultura popular e ganha reconhecimento. Para discutir a validade e a importância dessa ação, mais de 70 cordelistas, repentistas e xilogravadores se reuniram, no dia 26 de fevereiro, na sede do IEB, na Cidade Universitária. “Com esses encontros, queremos que esses profissionais sejam reconhecidos não só como artesãos, mas também como especialistas na arte que fazem”, afirma Elisabete Marin Ribas, supervisora técnica de acervos do IEB.

Ana Carolina Carvalho de Almeida Nascimento, pesquisadora do Iphan, esclarece que realizar o registro da literatura de cordel é um movimento compartilhado com os detentores do saber e por isso essas reuniões, já realizadas em vários locais do Brasil, são fundamentais para que os autores tomem conhecimento da importância desse processo do Iphan e ajudem enviando material. “São os próprios autores que apresentam as definições do que é literatura de cordel, do que é repente, quais são os locais de referência e quais os principais desafios para o desenvolvimento dessa prática”, observa.

O responsável pelo Patrimônio Imaterial da Superintendência do Iphan, Marcos Rabelo, explica que o registro para o patrimônio imaterial equivale ao tombamento para patrimônio material. “É um instrumento de valorização para os bens imateriais, que são as celebrações, os ofícios, os modos de fazer. O patrimônio imaterial é vivo, em transformação.”

O decreto 3.551, de agosto de 2000, que institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, determina quatro categorias desses bens: saberes (conhecimentos tradicionais associados ao modo de fazer não escolarizado), celebrações, formas de expressão e lugares, aqueles com valor estético, como a Cachoeira de Iauareté, lugar sagrado dos povos indígenas tariano, tukano e tuyuka, entre outros, em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas.

Folhetos de cordel em preparo para conservação no IEB: acervo do instituto conta com obras de importantes autores ligados a essa arte, como Patativa do Assaré | Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Folhetos de cordel em preparo para conservação no IEB: acervo do instituto conta com obras de importantes autores ligados a essa arte, como Patativa do Assaré | Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Para Paulo Iumatti, vice-diretor do IEB e especialista em literatura de cordel, o acervo é um dos mais importantes do Brasil, tanto em termos qualitativos quanto em termos quantitativos. “Recebemos doações de várias coleções, abrangendo praticamente toda a história da literatura de cordel até os tempos atuais. Uma delas é a coleção do início do século 20 de Mário de Andrade, por exemplo.”

Iumatti afirma que trazer a literatura popular para dentro do meio acadêmico é uma forma estratégica de despertar o interesse das pessoas e dos pesquisadores para estudar a invenção do que se chama de cultura brasileira, e transformá-la em registro de patrimônio imaterial é uma forma de salvaguardar, apoiar e favorecer a sobrevivência da obra, não no sentido de congelar ou cristalizar o crescimento. “Pelo contrário, é dar liberdade aos próprios protagonistas a continuarem com maior segurança a produção de suas criações”, ressalta.

O Manual do Patrimônio Cultural Imaterial do Iphan, de 2012, ressalta que reconhecer a literatura de cordel por meio de um instrumento de registro tem como efeito obrigar o poder público a documentar e dar ampla divulgação a esse bem, de modo que toda a sociedade possa ter acesso a informações de sua origem, trajetória e transformações por que passou ao longo dos anos, seus modos de produção, seus produtores, como é consumido e como circula entre os diferentes grupos da sociedade.

Xilogravuras

Elisabete Marin e Mariana Januzzi manuseiam o acervo do IEB | Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Elisabete Marin e Mariana Januzzi manuseiam o acervo do IEB | Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Dentre as raridades do acervo do IEB estão as xilogravuras de Juazeiro do Norte, da coleção de Geová Sobreira, doadas pelo professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) Gilmar de Carvalho, grande estudioso da área. “Cada xilo foi feita pelo seu próprio autor”, observa Elisabete Marin. “E vem com uma breve biografia, como a xilogravura O Pavão, de Manoel Lopes, nascido em União dos Palmares, em Alagoas, no começo do século 20.”

O folheto As Proezas de João Grilo, de João Martins de Athayde, relata o nascimento do herói e uma de suas “presepadas”. Ariano Suassuna bebe da fonte dessa obra ao criar o seu personagem protagonista, pobre e franzino, da peça Auto da Compadecida.

João Grilo foi um cristão
que nasceu antes do dia,
criou-se sem formosura,
mas tinha sabedoria
e morreu depois da hora
pelas artes que fazia.

E nasceu de sete meses,
chorou no bucho da mãe;
quando ela pegou um gato
ele gritou: “não me arranhe
não jogue neste animal
que talvez você não ganhe”.

Obras mais recentes, como Cordel em Arte e Versos, de 2008, de Moreira de Acopiara, estão impressas em livros. Através de oficinas, Acopiara ensina cordel nas escolas e presídios da Grande São Paulo e sua obra é considerada pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil como altamente recomendável.

A coleção de Stelio Torquato verte 15 clássicos da literatura mundial para versos de cordel, como Ilíada e Odisseia, de Homero, Eneida, de Virgílio, e A Divina Comédia, de Dante Alighieri, entre outros títulos. “O autor apresenta em cordel obras-primas universais, com o objetivo de contribuir para a popularização de textos consagrados pela tradição, facilitando ao grande público a leitura dos clássicos”, observa Elisabete.

O verso inicial da Ilíada, por exemplo, fica assim, na versão de Torquato:

Queira a Deus que eu consiga narrar
Com graça e esmero
Os feitos do grande Aquiles
Herói afamado e fero
Da grande epopeia grega
A Ilíada de Homero

 

Portal vai reunir acervos de cordel de todo o País

Dentre as pesquisas realizadas pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) está um projeto, aprovado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), de produção de um banco de dados nacional sobre literatura de cordel, coordenado pelo professor Paulo Iumatti, vice-diretor do instituto, que comporá um portal com todos os acervos sobre esse tema, incluindo os da Fundação Joaquim Nabuco, Biblioteca Nacional, Fundação Casa de Rui Barbosa, Biblioteca Amadeu Amaral, Universidade Federal da Paraíba (UFP) e Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).

Um olhar sobre a estética visual das gravuras impressas nas capas dos cordéis é feito pela pesquisadora de iniciação científica Mariana Januzzi, aluna do curso de Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. “A maioria dos cordéis é crítica, apresentando as coisas do cotidiano com humor e escárnio. Encanta-me observar como essas gravuras chamam a atenção do leitor, mesmo sem o uso de cores e com o mínimo de recursos”, analisa a pesquisadora.

Izabel Leão/Jornal da USP


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