Exposição de arte brasileira na Europa em 1944 é tema de filme

Exibido na USP, documentário dirigido por Zeca Brito reconstitui um esquecido episódio da arte e da diplomacia brasileira

 28/03/2024 - Publicado há 3 meses
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Cena do filme Arte da Diplomacia – Foto: Divulgação

 

Em 1944, em meio à Segunda Guerra Mundial, o Brasil enviou, por intermédio do Ministério das Relações Exteriores, 168 obras de 70 artistas modernistas, além de 162 fotografias, para Londres, na Inglaterra, onde foram expostas em oito galerias antes de irem a leilão. Todo o valor arrecadado foi transferido para a Força Aérea Real inglesa (RAF). O evento teve grande valor simbólico no contexto da guerra, mas nunca havia sido investigado a fundo até virar tema de pesquisa do diplomata Hayle Gadelha, em 2014, e inspirar o documentário Arte da Diplomacia, dirigido por Zeca Brito, com roteiro de Frederico Ruas, lançado em 2023. No dia 25 passado, o documentário foi exibido na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, em evento que contou com a presença de Gadelha, Brito e Ruas e teve espaço para bate-papo antes e depois da sessão.

O diplomata Hayle Gadelha – Foto: Facebook

O principal ponto, tanto da pesquisa do diplomata como do filme, é entender a simbologia por trás da exposição, que foi a maior mostra de arte brasileira fora do País até então e uma das mais representativas do Brasil até hoje. Gadelha conta que, no catálogo de divulgação da época, havia dois textos introdutórios. “Um era de Sacheverell Sitwell (1897-1988), crítico britânico bastante condescendente e que valorizava a exposição não pelo seu aspecto artístico — o qual ele não reconhecia —, mas pelo esforço daqueles artistas que vinham de um país que ele considerava pobre. O outro texto é do crítico brasileiro Ruben Navarra (1917-1955), que falava de um Brasil alinhado às vanguardas modernistas e à escola parisiense”, disse Gadelha durante o evento.

A realização da mostra fazia parte de um movimento do Brasil em busca de se apresentar ao mundo não só como um exuberante exportador de matérias-primas, mas também como um produtor de ideias. Para isso, e uma vez que não era uma potência econômica ou militar, o País se valia do que hoje o estudo das relações internacionais define como soft power, isto é, a influência global por meios culturais — passando a ser visto como um país “amigável”, “criador de pontes”. Isso já vinha acontecendo desde o início do século, mas foi parte importante da atuação de Oswaldo Aranha (1894-1960), ministro das Relações Exteriores de Getúlio Vargas (1882-1954) à época.

A exposição iniciada na Royal Academy of Arts de Londres, ao colocar em destaque obras sul-americanas e modernistas, rompia com o ideal de realismo defendido pelo nazifascismo, o que trazia, também, uma nuance de provocação e de posicionamento do Brasil diante da guerra. Isso se amplifica pelo fato de não ter havido uma curadoria específica: cada artista enviou o que quis, trazendo um ar de originalidade à arte brasileira que também transcendia a reprodução das vanguardas europeias.

Protagonismo dos artistas

O cineasta Zeca Brito, diretor de Arte da Diplomacia – Foto: Ministério da Cultura/Flickr

Com 91 minutos de duração, Arte da Diplomacia procura dar protagonismo aos artistas. “Nosso olhar tenta sair um pouco da instituição e olhar para o que estava fora. Por meio do contato com os familiares dos artistas e com pessoas ligadas à arte que viveram aquele período, tentamos resgatar a história e entender o porquê de aquilo ter se perdido no tempo”, explica Brito. Sob essa premissa, o documentário dá destaque a dez dos 70 artistas da mostra, entre eles Cândido Portinari (1903-1962), Lasar Segall (1889-1957), Francisco Rebolo (1902-1980) e Tarsila do Amaral (1886-1973).

Heitor dos Prazeres foi o único homem negro a expor em 1944. Por esse motivo, a direção do filme escolheu Glaucea Helena de Britto, arte-educadora pela USP, que é negra, para falar sobre sua obra. Segundo ela, Heitor trazia o samba como mais do que um ritmo, uma alegoria ou uma temática, mas como um fundamento, um modo de pensar. Além disso, ele trazia referências de matriz africana, e teve no racismo um obstáculo para que obtivesse mais destaque no futuro.

Outro nome que aparece com detalhes no filme é o de Carlos Scliar. “Gay, judeu e comunista, tinha o sonho de transformar a sociedade por meio da arte e uma sede por justiça social”, narra o filme. É mostrado, também, que Scliar, um pacifista, sentiu-se compelido a ir à Europa lutar pelo Exército brasileiro, e registrou sua experiência em desenhos, que Regina Lamenza, do Instituto Cultural Carlos Scliar, considera sua principal obra.

Lucy Citti Ferreira representa o trabalho da mulher modernista. No documentário, é apresentada como alguém cujos traços se assemelham aos de Lasar Segall. O filme conta que ela foi colega de trabalho do artista lituano-brasileiro. Já Alcides Rocha Miranda é apresentado pelo seu filho, Luiz Aquila. Arquiteto e artista, Rocha Miranda foi responsável por organizar a exposição, ao lado de Clóvis Graciano (1907-1988) e de Augusto Rodrigues — que também é retratado por meio de seus descendentes, que questionam o pouco estudo sobre seu trabalho.

Para falar da política do governo Getúlio Vargas, a entrevistada é Anita Leocádia Benário Prestes, filha do líder comunista Luiz Carlos Prestes e de Olga Benário, que fala sobre as características do ex-presidente brasileiro, que Gadelha define como “ambíguas”, diante de um Oswaldo Aranha fortemente alinhado aos Aliados.

O documentário se encerra com imagens dos atos antidemocráticos ocorridos em Brasília no dia 8 de janeiro de 2023, quando o quadro As Mulatas (1962), de Di Cavalcanti, foi destruído, consolidando o paralelo que os produtores da obra procuraram fazer entre o cenário de instabilidade política no Brasil de 1944 e o da contemporaneidade. Arte da Diplomacia reitera, mais de uma vez, “o papel que a arte tem que assumir, de tempos em tempos, diante de regimes autoritários”, como disse Zeca Brito, no evento realizado na ECA.

Cartaz do filme Arte da Diplomacia – Foto: Divulgação

Entre o institucional e o artístico

No final do filme, é reproduzida a leitura de um poema pelo cineasta Glauber Rocha (1939-1981), no qual é feita uma crítica ao “dirigismo político” e um clamor pela liberdade dos artistas. Ainda que se trate de uma mensagem simbólica, ela serve para representar, também, os diferentes pontos de vista sobre o acontecimento dos anos 1940. Os produtores do filme e o diplomata admitem que a relação entre eles não foi sempre de convergência, justamente devido ao fato de Brito e Ruas darem mais destaque aos artistas e Gadelha, ao papel do Itamaraty. Por um lado, como disse o diplomata no evento, “foi o Estado que começou a traçar os caminhos do Brasil para fora e, sem ele, a mostra jamais teria acontecido. O Itamaraty utilizou-se da estratégia de avisar primeiro a imprensa e só depois os ingleses”. Por outro lado, os produtores ressaltaram que “os artistas fizeram o diagnóstico da necessidade de alinhamento do Brasil muitos antes do governo”.

Mas eles não discordaram em tudo. Em sua estudo sobre a exposição de 1944, Gadelha recorreu, principalmente, à pesquisa de campo no Arquivo Nacional de Londres, uma vez que, segundo ele, havia poucas fontes bibliográficas, e as poucas existentes continham erros, como as que afirmavam que a mostra aconteceria em Manchester — o local foi trocado. A partir daí, o diplomata percorreu a Inglaterra para colher material em diferentes galerias, assim como os produtores do filme fizeram. E a constatação foi semelhante: há, hoje, tão pouco conhecimento a respeito da arte brasileira quanto havia em 1944, o que leva à propagação de estereótipos. Uma curadora de um museu inglês, entrevistada no documentário, chegou a afirmar que “estranhou” uma pintura brasileira que não tinha características como o samba e a natureza exuberante como destaques.

O evento na ECA foi organizado pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte (PGEHA) e pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (Prolam), ambos da USP.

O trailer de Arte da Diplomacia está disponível neste link.

* Estagiário sob supervisão de Marcello Rollemberg e Roberto C. G. Castro


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