Livro celebra trajetória de Erney Plessmann de Camargo e a coragem de fazer ciência no Brasil

Publicação lançada pela Fundação Conrado Wessel tem textos e depoimentos que relembram a carreira do cientista que é considerado um dos principais pesquisadores em Chagas, malária e doenças negligenciadas no mundo

 13/11/2023 - Publicado há 8 meses
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Erney Plessmann dedicou a carreira científica a solucionar problemas de saúde pública- Arte sobre foto de Fiocruz RO

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“Erney Plessmann de Camargo é um dos nomes mais conhecidos na ciência brasileira, seja como pesquisador ou gestor. Recebeu os títulos de Professor Emérito da Universidade de São Paulo (USP), do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) e da Faculdade de Medicina da USP. Foi presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), presidente do Instituto Butantan e diretor-presidente da Fundação Butantan. Foi diretor-presidente e coordenador científico da Fundação Conrado Wessel (FCW)”. Esse é um dos trechos que iniciam o livro Coragem! Erney Plessmann de Camargo e o desafio de fazer ciência no Brasil
uma celebração à vida e à carreira científica desse grande nome da ciência, que acaba de ser lançado pela Fundação Conrado Wessel. O download gratuito pode ser feito neste link

Camargo faleceu no dia 3 de março deste ano, aos 87 anos. Suas últimas atividades foram como professor sênior da USP, trabalhando com diversidade, taxonomia, filogenia e evolução de tripanosomatídeos. Em homenagem ao cientista, uma iniciativa da Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação (PRPI) da USP instalou no dia 16 de outubro a Cátedra Erney Plessmann de Camargo, que nomeou o jurista, advogado e primeiro procurador-chefe do Tribunal Penal Internacional, Luis Moreno Ocampo, como seu primeiro titular. O objetivo da cátedra é promover atividades multidisciplinares que gerem e disseminem conhecimento com impacto na sociedade, em âmbito local, nacional e internacional, propondo novos fundamentos para uma ordem global mais sustentável. As atividades serão abertas à participação de professores, pesquisadores e personalidades do Brasil e do exterior.

Cientista dos temas emergentes e cruciais

Na introdução da obra, Carlos Vogt (atual diretor-presidente da FCW) cita um artigo sobre a malária publicado na revista Ciência e Cultura, que “mostra de maneira impecável características recorrentes na figura do Erney, como a serenidade em tratar de temas emergentes e cruciais, uma serenidade que permitia ao raciocínio se organizar e se explicitar de maneira muito clara, ao mesmo tempo em que permitia formular de maneira objetiva ações que visavam a solucionar problemas de saúde pública”. Segundo Vogt, “os textos que escreveu na edição são emblemáticos do ponto de vista de sintetizar características fundamentais para o entendimento da personalidade do cientista, homem público, gestor, coordenador de projetos e grande motivador da ciência que o Erney foi no país e continua sendo pelo legado que deixou”.

Para Vogt, esses textos também mostram como e porque as opções do Erney foram feitas desde o início, com o ingresso no curso de Medicina e no Departamento de Parasitologia e sua preocupação com a saúde pública. “O aspecto social da Medicina sempre foi uma motivação chave nas escolhas que fez e, obviamente, a sua cassação do cargo de professor da USP em 1964 se deveu ao fato de que estava em um meio de objetivo absolutamente elitista e profissional no sentido exagerado da expressão, em que as pessoas se formavam em uma carreira de distinção e distinguidas, mas preocupadas somente com o sucesso pessoal e profissional”, comenta, acrescentando que desde o começo essa manifestação é chave porque é o imperativo que o leva às opções políticas.
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Erney retornou à USP em 1986 e reestruturou o Departamento de Parasitologia – Foto: ICB-USP
Erney foi até o sul da Etiópia, onde estão as tribos do Vale do Omo, região de origem e dispersão do parasita Trypanosoma vivax, estudada pelo cientista – Foto cedida por Marta Teixeira

“Não é que o Erney fosse comunista, ele ria disso, ele era comunista no sentido de que suas ações estavam voltadas para o social e isso era o fundamental”, ressalta, destacando que era mais uma característica existencial do modo de ser do que uma opção ideológica, que viria depois, “por estar lastreada em um substrato de comprometimento com a vida, com o ser humano e com a sociedade”. Vogt afirma que essa é a razão de tudo e isso revela algo que será constante na vida do cientista, a coragem, “um dos predicados que ele exalta e enfatiza, tanto na forma de enfrentar as situações, de conversar e motivar as pessoas, como na atitude, e tudo isso posto de maneira serena”.
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Biografia 

O livro traz uma biografia resumida do cientista: filho único de Felicio Edgard e Mary Marcondes, nasceu em 20 de abril de 1935, em Campinas, em uma maternidade que ficava na rua Culto à Ciência, como gostava de lembrar. Formou-se em 1959 pela Faculdade de Medicina da USP. A carreira científica começou no segundo ano do curso no Departamento de Parasitologia, liderado por Samuel Barnsley Pessoa. Depois de formado, estagiou por um ano no Instituto Butantan, supervisionado por Sebastião Baeta Henriques, estudando biossíntese de proteínas. Em 1961, foi convidado por Leônidas de Mello Deane, que ocupava a regência do Departamento de Parasitologia, para ingressar como auxiliar de ensino no quadro docente da Faculdade de Medicina. 

Ainda segundo trechos do livro, no início da carreira foi fortemente influenciado por outros pesquisadores da faculdade, como Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Leônidas e Maria Deane, Luis Rey, Victor e Ruth Nussenzweig, Michel Rabinovitch, Olga Castellani e José Ferreira Fernandes. “Seus primeiros trabalhos foram sobre a bioquímica de protozoários parasitas em colaboração com Luiz Hildebrando. Publicado em 19642, seu primeiro trabalho independente, sobre o crescimento e diferenciação do Trypanosoma cruzi, continua a ser regularmente citado na literatura científica internacional. Publicou centenas de artigos científicos, sendo reconhecido como um dos principais pesquisadores em Chagas, malária e doenças negligenciadas no mundo”. 

Em 1969, obteve o título de doutor pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, realizou a livre docência no Departamento de Bioquímica da USP (1979) e o pós-doutoramento no Instituto Pasteur, em Paris (1983). Foi professor titular do ICB-USP, onde foi chefe do Departamento de Parasitologia e vice-diretor. Também ocupou o cargo de pró-reitor de Pesquisa (1988-1993), foi membro do Conselho Deliberativo do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) de 1986 a 1989 e seu presidente de 2003 a 2007. Foi presidente da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e da Fundação Zerbini-Incor. Integrou os conselhos superiores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), entre outros. 

Foi membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC), da Academia Mundial de Ciências (TWAS), da Sociedade Brasileira de Parasitologia, da Sociedade Brasileira de Bioquímica e da Sociedade Brasileira de Protozoologia, entre outras. Por sua trajetória científico-acadêmica recebeu várias honrarias, como a Ordem do Ipiranga no grau grã-cruz (2006), a Ordem Nacional do Mérito Científico nos graus comendador (1998) e grã-cruz (2002), o prêmio LAFI de Medicina (1980) e o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Nacional de Ingeniería do Peru. Morreu no dia 3 de março de 2023, em São Paulo, aos 87 anos, devido a complicações após uma cirurgia na coluna.


Ele por ele mesmo

Entrei na Faculdade de Medicina muito cedo, com 17 anos e sem experiência alguma, praticamente uma criança. E entrei em um mundo novo, inclusive um extrato social diferente, porque o meu extrato social de origem é pobre e o ambiente da faculdade era um ambiente de classe média alta. Estranhei muito, tive uma certa dificuldade de adaptação. Politicamente, eu era de esquerda, evidentemente uma esquerda juvenil e, ao entrar na faculdade, comecei a adquirir um sentido mais profundo de participação política e social.

Então, me aproximei mais da parasitologia, exatamente porque era um departamento de esquerda, era o chamado ‘departamento vermelho’ da Faculdade de Medicina. E isso, junto com o que eu gostava em termos de história natural e a posição política do departamento, me aproximaram. Estavam lá o Hildebrando [Luiz Hildebrando Pereira da Silva], com quem eu vim trabalhar depois, Ruth e Victor Nussenzweig, Maria e Leônidas Deane, Luiz Rey, gente muito boa, intrinsecamente boa e intelectualmente diferenciada. Foi pouco depois da descoberta da dupla hélice do DNA, um momento de ebulição na ciência, quer dizer, as coisas estavam se descobrindo naquele momento e tínhamos dentro da Faculdade de Medicina um grupo de jovens extremamente interessados em ciência.
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Família Aranha Camargo: Erney, a esposa Marisis e os filhos – Foto: Arquivo pessoal
Retrato feito pelo Instituto Butantan, onde foi diretor – Foto: Acervo Instituto Butantan / Centro de Memória

Na vida cotidiana

Sua serenidade transparecia também no cotidiano, recorda Vogt: “Você conversava, se entusiasmava, falava e tal e ele permanecia sereno. Às vezes, fazia uma observação, às vezes, era um sorriso, em outras, um olhar, que iam revelando o grau de envolvimento dele com tudo e, ao mesmo tempo, a tranquilidade com que ele encarava as missões, os projetos e os objetivos, como parte da vida e do cotidiano”. Ele usa uma anedota para ilustrar as preferências eletivas de Erney no que diz respeito ao comportamento. Vogt revela que ele gostava de contar uma piada, que teria ouvido de Victor Nussenzweig: Um homem entra em uma loja em Nova York que vende papagaios, olha um bonito e pergunta o preço. “Dez mil dólares”, responde o dono. “Dez mil dólares? Mas o que ele faz?”, pergunta o homem. “Ele canta todas as músicas dos Beatles”. “E aquele outro?”. “Vinte e cinco mil; fala a Bíblia inteira, Velho e Novo Testamento”. O homem então aponta um terceiro. “Cinquenta mil dólares. Recita todo o Alcorão”. O homem anda pela loja até que vê um papagaio em um poleiro bem ao alto. “E aquele ali?”, pergunta. “Aquele não está à venda”. “Como assim, mas o que ele faz?”. “Não faz nada”, responde o dono da loja. “Não faz nada?”, questiona o homem. “Ele não faz nada, mas todo mundo o chama de sábio.” 

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Jurista Luis Moreno Ocampo é o primeiro titular da Cátedra Erney Plessmann de Camargo

Como lembra Vogt, Erney tinha horror de conversa fiada, ficava enfastiado logo que começava um discurso. “O Erney era um sábio com uma vocação social muito grande. Social do ponto de vista das preocupações ideológicas, social no sentido de reforçar a importância da convivência, do diálogo, da conversa, da participação, das situações em que o trabalho e a vida intelectual se mesclam com o prazer. Tudo o que Erney fez, ele fez bem. Quando olhamos sua trajetória de vida do ponto de vista das atividades, sejam acadêmicas, de gestão ou de administração, vemos que ele teve um reconhecimento em vida da importância do que fez, do pioneirismo com que conduziu trabalhos sobre temas que afligem sociedades imensas e historicamente negligenciadas. Isso faz compreender imediatamente que da reflexão do trabalho intelectual, do trabalho de pesquisa, ele imediatamente passava para ações objetivas, que visavam pôr em prática aquilo que a ciência possibilitava e que as descobertas da ciência de que ele próprio participava permitiam”.   

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