“Não mito no sentido de fabulação, mas de componente estrutural de nossa percepção das coisas, que não pode ser eliminado, porque nossa concepção de corrupção não permite sua eliminação”
![Tércio Sampaio Ferraz Jr. é professor aposentado da Faculdade de Direito](https://jornal.usp.br/wp-content/uploads/20160510_09_md-1.jpg)
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Não mito no sentido de fabulação, mas de um componente estrutural de nossa percepção das coisas. Nesse sentido, algo que não pode ser eliminado, não porque o homem seja moralmente fraco, mas porque nossa concepção de corrupção não permite sua eliminação.
Encontra-se aí, aliás, um motivo para voltar-nos para o que se pode chamar de micropolítica enquanto uma técnica política de exercício de poder. Trata-se de instrumento para a exploração de espaços informais na busca de influência, prestígio, reconhecimento, capazes de gerar redes de relações, embora sem mostrar-se diretamente nessas consequências.
O que torna a micropolítica difícil de ser racionalizada (ao contrário da macropolítica e seus instrumento tradicionais: competência, poder de polícia, impositividade legal, uso regulado da força etc.).
Micropolítica explica, nessa linha, os chamados paternalismo e clientelismo, tomados não como distorções da macropolítica, mas como instrumentos necessários ao exercício do poder político ali onde os instrumentos oficiais não dão conta inteiramente de produzir coesão social e governabilidade.
Micropolítica, nesse sentido, não se confunde, de plano, com corrupção, mas tem relação com ela. Pode-se dizer, assim, que o sentido moderno de corrupção tem a ver com um processo histórico de diferenciação e separação, em que micro e macropolítica ganham linhas divisórias, que se tornam barreiras para o exercício do poder.
Nas sociedades pré-modernas uma percepção crítica da corrupção (condenação da corrupção) aparecia quando as expectativas da clientela se frustravam. Entre um cliente e um patrono se estabelecia uma relação de fidelidade/lealdade que, de princípio, era tida como inegociável, isto é, não podia ser comprada.
A percepção da corrupção aparecia, então, quando entrava o dinheiro como uma forma de dádiva (presente), o que acabava por monetizar as relações. Ou seja, o dinheiro corrompia porque tornava obsoletas as máximas fundamentais do clientelismo paternalista: lealdade e fidelidade não se compram.
Nas sociedades pré-modernas uma percepção crítica da corrupção (condenação da corrupção) aparecia quando as expectativas da clientela se frustravam.”
Já na sociedade de mercado, a economia capitalista passa a ver no dinheiro o meio hegemônico de qualquer troca, neutralizando os objetos e os sujeitos da troca e pondo as relações micropolíticas sob suspeita.
Em consequência, nos últimos 200 anos, o favorecimento de parentes e agregados vai perdendo sua força cultural na determinação da estrutura social, substituída por uma nova mentalidade: a ação humana movida pelo ganho e pela acumulação, o que exige eficiência (Estado burocrático/racional somado à franca liberdade empresarial) e uma forte diferenciação funcional entre o público e o privado. Nesse novo contexto, o exercício da micropolítica mediante as antigas formas de mecenato nepotista e clientelista torna-se símbolo de reacionarismo, conferindo à crítica à corrupção um sentido modernizador. Mas com isso altera-se o ambiente político-social, pela generalização dos atores e a introdução de um ator novo: as massas (política de massas).
Não obstante, nesse ambiente a micropolítica ganha novos contornos: os antigos mecanismos de oferta de benefícios, enquanto garantia de confiança e lealdade, são transportados para as políticas sociais em forma de instrumentos burocráticos para controle de massas (planejamento administrativo), monetizando-se e recompondo, em formas alternativas, a antiga relação paternalismo/clientelismo.
Com isso cresce, de um lado, o entendimento da política como uma “questão de consciência” de cada cidadão, trazendo como consequência uma crescente integração entre opinião pública e imprensa (opinião pública midiatizada) – o que favorecerá a “crítica à corrupção” em novo sentido – e, de outro, uma progressiva diferenciação entre administração e governo, parlamento e partido, com o surgimento de uma figura até então desconhecida: o político profissional, figura distinta do empresário, e que torna suspeita a confusão dos respectivos papeis.
Escândalos incorporam-se à cena política, pela revelação de segredos inconfessáveis, detalhes picantes de políticos proeminentes, figuras obscuras ligadas a empresários.”
Nessa nova dinâmica, corrupção adquire uma nova lógica: se no passado era tema circunscrito a elites sociais, alastra-se a temática para muito além das limitações de classe.
Daí o papel paradoxal da mídia de massas. De uma parte, a mídia provoca a exigência de transparência, politicamente independente e economicamente autossustentável, fundamento da opinião pública. De outra, porém, a escandalização repousa em valorações geradoras de indignação popular, que são, assim, maximizados pela própria mídia.
Daí o dilema democrático: um jogo de realimentação sem precedentes de disputas pro e contra, sob o título de liberdade de imprensa?
E nesse paradoxo reflete-se, afinal, o paradoxo da investigação da corrupção, percebido em instrumentos como o da delação premiada, que repousa, de um lado, na violação de lealdades morais, próprias do micropoder (traição) e, de outro, na plausibilidade de negociação de valores fundamentais como a própria liberdade (cálculo de sobrevivência).
E, no choque entre éticas de convicção e de finalidade, o dinheiro volta a desempenhar um papel fundamental de neutralização moral, tornando a delação algo que se mede pelo preço.
É, de novo, a corrupção moderna, agora como cálculo e objeto de negociação. E aqui a observação histórica nos surpreende, ao mostrar que uma educação cívica, baseada em valores eticamente incontestáveis, quando efetuada em um marco institucional e social inadequado, governado por políticas e políticos corruptos, pode entrar em colapso e fracassar.
Foto: Francisco Emolo/Arquivo Jornal da USP
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