Um tributo a Ana Mae Barbosa, pioneira da arte-educação no Brasil

Escola de Comunicações e Artes da USP dá título de Professora Emérita a uma das maiores autoridades em ensino da arte do País

 22/10/2021 - Publicado há 3 anos     Atualizado: 18/06/2024 as 10:16
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A professora Ana Mae Barbosa: “Meu sonho é ver arte e design nas escolas públicas de ensino médio” – Foto: Cecília Bastos

 

Tarde de 15 de outubro de 2021. A câmera abre via aplicativo Meet e a professora Ana Mae Barbosa aparece com o sorriso de sempre: “Feliz Dia dos Professores para todos nós”. Um dia especial para quem vive uma rotina de mais de meio século na batalha pioneira pela arte-educação, além de formar incontáveis mestres e doutores, artistas e educadores que levam por todo o País a certeza de uma área do conhecimento que se integra a todas as outras áreas, estimulando a olhar e a pensar o mundo com arte e ciência. No dia 25 de agosto passado, a Congregação da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP decidiu conceder o título de Professora Emérita a Ana Mae Barbosa. A data da entrega da homenagem ainda será definida.

Ana Mae fala sobre a sua trajetória e destaca a importância de receber o título de Professora Emérita. “Na ECA, vivi um paraíso interdisciplinar. Trabalhava com todo mundo, o pessoal dos departamentos de Artes, Música, Teatro, Relações Públicas, Propaganda e Publicidade e Jornalismo. Uma relação especial.”

Com o bom humor que a parceria com a arte impregnou nela, a professora admite: “É um caso de amor. Muito grande. Uma paixão bem retribuída. Eu jamais poderia trabalhar em um lugar tão profícuo que me impulsionasse tanto, que me desse tanta liberdade”.

Durante muito tempo a arte-educação – não só no Brasil, mas nos Estados Unidos e em diversos países – foi considerada subsidiária das outras áreas da arte. Estava realmente nas margens. Era marginal.

Ana Mae chegou ao Departamento de Artes Plásticas da ECA em 1974, trazendo as pesquisas em arte-educação que desenvolveu no mestrado na Universidade de Yale, em Connecticut, nos Estados Unidos. “Tive um chefe extraordinário que era Walter Zanini, uma pessoa generosa que me deu total liberdade. Quando estava pesquisando e encontrava algo sobre arte-educação, fazia questão de copiar e me passar”, lembra. “Durante muito tempo a arte-educação – não só no Brasil, mas nos Estados Unidos e em diversos países – foi considerada subsidiária das outras áreas da arte. Estava realmente nas margens. Era marginal. Quando pedi a bolsa para fazer mestrado, ela foi negada com a justificativa de que arte-educação não era área de pesquisa. Isso dito pela Capes nos anos 70.”

Em 1978, fez o doutorado na Universidade de Boston e chegou ao Brasil como a primeira especialista a implantar a arte-educação. Uma formação que compartilha, há 47 anos, como professora e orientadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da ECA.

A professora guarda muitas histórias que atravessaram os anos de chumbo. “Como a ECA era a mais nova das unidades, havia sempre a ideia na USP de que ela era rebelde. E era, de certo modo. Aí mandavam diretores mais durões para lá, mais para a direita do que para a esquerda.”

Entre as iniciativas que faz questão de contar, está a organização do Seminário de Arte e Ensino, em setembro de 1980. “Fui falar com o diretor e disse que precisava de uma verba. E ele respondeu: ‘Vá tocando, vá tocando, se precisar você vem a mim’.”

Dias depois, a professora foi comunicar ao diretor que já havia mais de 1.500 pessoas inscritas no seminário. Ele ficou pasmo e questionou: “O quê? Não pensei que arte-educação juntasse tanta gente. Sempre soube que comunicação era área de interesse. Mas arte-educação?”. O diretor cumpriu o que prometeu e ajudou na produção do evento. “E assim foi. Os colegas de cinema, teatro, música, artes visuais, de todas as áreas colaboraram. Foram 3 mil pessoas. Acho que nunca mais teve um encontro com tanta gente.”

O seminário, que tinha entre os participantes o educador Paulo Freire, atraiu estudantes e professores de todo o País. “Veio um ônibus lotado do Pará. A turma chegou toda à vontade e, aqui em São Paulo, um frio tremendo. Todos se mobilizaram para arranjar roupas para os estudantes.”

“Eu tenho um sonho há quase 30 anos. É uma utopia. Antigamente, as utopias significavam esperança. Hoje em dia, utopia é quase um exercício mental para você não ficar no mesmo lugar.”

Ana Mae na defesa do doutorado da filha Ana Amália, em 2012 – Foto Cecília Bastos

 

Atualmente, Ana Mae enfrenta o tempo da pandemia em sua sala, entre livros e quadros. Bem que gostaria de visitar uma livraria, observar as prateleiras. E se deparar com um lançamento fora de sua bibliografia, conversar pessoalmente com os orientandos da USP e da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, onde leciona. Mas ela aprende a manter a tranquilidade junto com a filha, a artista e pesquisadora Ana Amália, e a neta Ana Lia. Aprende a ver além da tela do computador. Tem atividades diárias, apresenta seminários, aulas. E dá asas aos sonhos que continuam no horizonte. Relata:

“Eu tenho um sonho há quase 30 anos. É uma utopia. Antigamente, as utopias significavam esperança. Hoje em dia utopia é quase um exercício mental para você não ficar no mesmo lugar. Nesse sentido, não estou prevendo, porque sei que estamos em um momento muito difícil para a cultura e para a arte.”

Ana Mae continua: “Meu sonho é uma instituição na USP, um museu, um instituto ou seja lá o que for, onde haja disponibilidade para abrir cursos de ateliê para toda a USP. Os alunos de Medicina, Engenharia, Direito, Economia, Geologia, Paleontologia e de todas as áreas que quiserem fazer arte terão espaço, orientação e incentivo. É um sonho que, na verdade, não era só meu. Foi compartilhado com o ex-reitor Roberto Leal Lobo. Nós conversamos sobre isso. Uma coisa maravilhosa. Naquele momento não havia lugar.”

Na direção do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, de 1987 a 1993, Ana Mae abriu novos rumos para a instituição. Criou cursos teóricos de história da arte, do acervo e cursos interdisciplinares. Diante dessa experiência e também dos resultados do Projeto Nascente, que ajudou a instituir em 1990, a professora acredita que as artes têm muito a contribuir com a relevância e inovação da Universidade.

“Os adolescentes da escola pública não têm oportunidade para descobrir o design ou o que é ser designer. Na periferia, não há dinheiro para comprar livro, jornais nem comida.” 

Outro sonho que a professora Ana Mae ainda batalha para realizar é o ensino de arte e design no ensino médio. “Tentei muito, mas não fui feliz e hoje a infelicidade baixou no ensino médio porque praticamente retiraram arte. Seria importante no ensino médio juntar arte e design. Os adolescentes da escola pública não têm oportunidade para descobrir o design ou o que é ser designer. Na periferia, não há dinheiro para comprar livros, jornais nem comida. Como é que eles vão saber sobre uma profissão sedutora que pretende organizar a sociedade da melhor maneira? Seria muito importante para o seu futuro se tivessem aulas e noções sobre arte e design.”

Para investigar as possibilidades dessas aulas, a professora organiza um projeto com seus alunos da Universidade Anhembi Morumbi, que desenvolvem pesquisas nas escolas de ensino médio. “Eles estão dando aulas de arte e design para ver os resultados. E têm tido muito sucesso. Os adolescentes desenvolveram a capacidade de criar espaços e fizeram uma exposição no Conjunto Nacional. O design dá mais segurança técnica, que leva a se fortificar do ponto de vista da iniciativa. Não estou dizendo que a arte não dá. Mas como a sociedade em geral valoriza o design, talvez o ego fique mais fortificado. Sei que talvez não veja a realização desses sonhos. Mas eu os alimento e falo para quem quiser ouvir.”

Com colaboração da pesquisadora e crítica de arte Alecsandra Matias de Oliveira


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