Sobre a igualdade de gênero na USP

Por Maria Arminda do Nascimento Arruda, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e coordenadora do USP Mulheres, Nina Ranieri e Suzana Henriques da Costa, ambas professoras da Faculdade de Direito da USP

 11/12/2020 - Publicado há 4 anos
Maria Arminda do Nascimento Arruda – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

 

Nina Beatriz Stocco Ranieri – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 

Susana Henriques da Costa – Foto: FGV
Uma questão da mais alta relevância tem ocupado a agenda das sociedades contemporâneas. As bandeiras em prol da igualdade de gênero, à qual se mesclam várias expressões identitárias, adquiriram contornos que independem, em certa medida, da cultura, da condição social, origem étnica, nacionalidade. Emergiu, nesse contexto, nova pauta de reivindicações que, se não são novas, tampouco desconhecidas, impõem desafios crescentes. Em consonância com os movimentos de repúdio às formas de dominação em geral, que se particularizam ao contestarem a ausência de reconhecimento do gradiente de identidades, as iniquidades originadas da condição de gênero tornaram-se assunto constante da esfera pública.

A estrutura de sentimentos daí resultante aponta para mudanças e superação da injusta realidade existente. Paradoxalmente, vias divergentes convivem com esses propósitos civilizatórios. De um lado, criou-se uma sensibilidade que permite enfrentar as desigualdades e dirimir vulnerabilidades; de outro, as intolerâncias, que se exprimem, frequentemente, em variadas atitudes de violência, tornam-se recorrentes, ou, pelo menos, são insistentemente noticiadas. Difícil avaliar se o acréscimo da violência de gênero no Brasil é fruto do registro mais apurado de ocorrências, produzido por políticas públicas de proteção, bem como pela veiculação das informações, seja por parte do papel relevante que a imprensa tem exercido na condenação de tais práticas, seja nas insistentes denúncias dos movimentos sociais, especialmente feministas. Certamente, ambos se retroalimentam e ganham maior visibilidade, quando tais práticas iníquas recebem sanções legais, a exemplo da Lei Maria da Penha de 2006, cuja aplicação deslegitima, condena e expõe a violência de gênero.

A despeito das medidas punitivas, os dados sobre a violência de gênero no Brasil são aterrorizantes: a cada 8 minutos, mulheres independentemente da faixa etária são estupradas; a cada 2 horas, uma é morta. Esses indicadores estão a revelar um movimento subterrâneo que, não obstante as medidas voltadas a coibir atitudes extremas de violência, estamos infinitamente distantes de quaisquer padrões civilizados. Situação ainda mais gritante quando agentes públicos não exercem as funções de repressão, assumindo, eles próprios, o papel de punição da vítima.

O problema, portanto, origina-se de uma miríade de causas e de variadas combinações de motivos, cujo arco abrange desde a extrema penúria econômica e carência de educação formal, até as expressões enviesadas da masculinidade de raiz patriarcal, mas que foram redefinidas no bojo da modernização. No conjunto, valores herdados se reproduzem em ambientes nos quais as mulheres passaram a atuar na vida pública, passaram a desempenhar atividades profissionais, a compartilhar o orçamento familiar, quando não se responsabilizar exclusivamente pelo sustento da casa, sobretudo nos ambientes carentes. Como estudos revelam, as mulheres são os atores mais comprometidos com os valores da mudança. Tal descompasso de papéis aprofunda os impulsos de afirmação do domínio masculino, com os atuais efeitos assustadores.

Está em questão uma matriz cultural que, em princípio, estaria em dissintonia com o presente, em função das transformações ocorridas. Todavia, a herança pregressa, baseada em relações tradicionais, passou a conviver e a se reproduzir em contextos valorativos diversos daqueles nos quais foram gestados. Essa particularidade brasileira ocupa todas as esferas da vida social e tem respondido pela maior parte dos nossos impasses. No Brasil, o arcaico se combina ao moderno, cuja consequência provoca, simultaneamente, o revigoramento da tradição que se redefine sem desaparecer, sufocando as forças da mudança que, por sua vez, assimilam valores do passado, debilitando os impulsos modernizantes, tornando-os restritos à esfera mercantil que se desenvolve sem peias. Esse drama da história brasileira, tão bem tratado por cientistas sociais como Florestan Fernandes, imiscui-se nas relações interpessoais e tem produzido a nossa tragédia de violência contra mulheres e daqueles que afirmam identidades próprias.

Se essas formas mais visíveis e até dramáticas de desigualdades podem ser enfrentadas por meio de ações concretas, há toda uma gama de desigualdades que se mantêm na invisibilidade, oriundas de estruturas organizadas segundo critérios isonômicos. Essas expressões são particularmente encontradiças em instituições que se autolegitimam sobre princípios de mérito, a exemplo das universidades. Nesse sentido, os graus de desigualdades são explicados por escalas meritocráticas sem que se pergunte sobre as suas condições estruturantes, particularmente de gênero. A crença na equidade de raiz é aparência, no fundo, da autoilusão institucional, por meio da qual esses organismos se legitimam. Tal illusio, para acompanhar a categoria do sociólogo Pierre Bourdieu, é expressão subjetiva e objetivamente partilhada por todos. Nesses ambientes, o tratamento das situações desiguais pressupõe conhecer, por meio de instrumentos de pesquisa, os padrões hierárquicos diferenciais. Em contrapartida, parece necessário formular e implementar medidas corretivas, que sejam capazes de dirimir as desigualdades. Na Universidade de São Paulo, particularmente, o Escritório USP Mulheres e outras iniciativas relevantes estão em curso.

Na Faculdade de Direito, por exemplo, a igualdade de gênero vem merecendo especial atenção. Embora as mulheres sejam 50% entre os alunos, são apenas 17% entre os professores. Até o momento, a medida mais concreta para enfrentar essa realidade foi a previsão de postergação da data de realização de concursos docentes em caso de candidata(s) grávida(s). Também se passou a exigir, nos eventos ali organizados, a presença, na composição das mesas de expositores, debatedores, mediadores e oradores, de no mínimo 25% de mulheres. Especialmente notável foi a inauguração da sala Ada Pellegrini Grinover, a primeira com o nome e o retrato de uma mulher no prédio histórico, que conta com mais de 15 salas batizadas com nomes de homens.

Paralelamente, consta-se nas interações no interior das salas de aula a existência de um currículo oculto, marcado pela invisibilidade das interações de gênero (cf. Interações de gênero nas salas de aula da Faculdade de Direito da USP: um currículo oculto?, de Sheila Christina Neder Cerezetti et all.). Não por outras razões, foram criadas disciplinas de graduação (Direito e Equidade de Gênero; Direito e Discriminação) que visam a promover e fortalecer a cultura de equidade de gênero na FD. Tema essencialmente transversal, pode ser apropriado de diversas formas pelo ensino, pela pesquisa e pela extensão universitária. Debate-se hoje, por exemplo, a representatividade feminina na bibliografia dos cursos de direito, bem como a utilização, nos variados métodos de ensino, de exemplos de liderança feminina como recurso pedagógico apto a incentivar as alunas a participarem mais dos debates em sala de aula.

No plano administrativo, medida importante foi a instituição da ouvidoria de gênero, responsável por receber denúncias de assédio, prática de atos potencialmente preconceituosos ou sexistas, agressões de conotação sexual ou sexista, bem como qualquer manifestação de discriminação relacionada ao gênero ou à orientação sexual.

A experiência da Faculdade de Direito demonstra as amplas possibilidades de absorção da temática de gênero em benefício do enfrentamento de situações de desigualdade, pautadas pela cultura e pela meritocracia. A mudança de matrizes culturais exige esforço, persistência e dedicação; na USP, a recente adoção de medidas de equidade na concessão de bolsas de pós-graduação e recredenciamento de orientadoras em virtude de licença-maternidade e adoção é prova dessa disposição. Ainda há muito por fazer e o apoio expressivo de alunos e alunas a tais mudanças é um sinal altamente promissor e alentador.

 

 


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