Bibliotecas universitárias: materialidade do ensino e da pesquisa

Por Anne Mayara Almeida Capelo, mestranda pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP

 03/12/2020 - Publicado há 3 anos
Anne Mayara Almeida Capelo – Foto: Arquivo pessoal

 

Na biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, livros cobertos com tecidos esperam pacientemente pelo retorno de seus leitores. Neste momento de pandemia, a ausência física da biblioteca no quotidiano de professores e alunos acentua ainda mais a inscrição profunda desse espaço como local privilegiado de transferências culturais.

Ao escrever esse texto, pego meu pensamento vagando pelos volumes que lá estão, pelos encontros que tive com livros que não procurei, pelos textos que compuseram bibliografias de disciplinas e pela lembrança das trocas de olhares a procura de colegas que topassem uma pausa na leitura para um café. A biblioteca é feita de livros, sim, mas principalmente de pessoas e seus interesses.

As bibliotecas universitárias, esse específico corpus textual reunido em um espaço, é um repositório, um acervo de conhecimentos sobre determinada área, constituído por doações e aquisições solicitadas por professores e departamentos que espelham as pesquisas, problemáticas de ensino e discussões em curso no momento da aquisição de cada um dos volumes. Este acervo, historicamente constituído, pode lançar luz, então, às modalidades de construção do saber científico da instituição que o abriga. Fréderic Barbier, historiador dos livros e das bibliotecas, em seu livro História das Bibliotecas, chama a atenção para o caráter material dessa base sustentadora da produção intelectual e científica, possibilitada pela relação desses espaços na participação em lógicas de transferências culturais.

Desde meados dos anos 1970, um grupo de pesquisadores em ciências humanas, com especial força na Inglaterra e na França, vem realizando pesquisas que colocam em xeque o ideal de uma “ciência pura”. Chamado de “antropologia das ciências”, ou ainda, “social studies in sciences”, esse campo, como ressalta Isabelle Stengers, pretende “(…) estudar a ciência à maneira de um projeto social como outro qualquer, nem mais descolado das preocupações do mundo, nem mais universal ou racional do que qualquer outro”. Ainda sobre a problemática do fazer intelectual, Barbier enfatiza a existência de uma história do pensamento dependente de um certo instrumental material, como são a escrita, a leitura e o livro, por exemplo.

Em confluência, esses dois autores nos indicam que há mais camadas de problemas a serem investigadas quando nos propomos a fazer uma história das ideias, uma história das ciências, uma história intelectual, uma história dos conceitos ou das instituições quando as formulações abstratas são tensionadas pela existência de locais como as bibliotecas universitárias: acervos materiais da construção intelectual. O mundo material, portanto, não aviltaria o mundo das ideias, da abstração e da criação científica e intelectual, como alguns colocam; mas o escancararia e mostraria sua ligação fundamental com um projeto social que constitui objetos e temas de pesquisa e de ensino.

O livro, a biblioteca e as possibilidades de escrita de histórias da arquitetura

Sob o tombo 015096, encontra-se na Biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) o já clássico L’ Architecture Contemporaine au Brésil de Yves Bruand. São três exemplares da obra doadas pelo próprio autor à biblioteca em 1973 – mesmo ano de seu lançamento na França. Fruto de uma pesquisa de doutorado finalizada dois anos antes na Universidade de Paris, o estudo é pioneiro no que se refere à abrangência com que encara a arquitetura moderna no país.

Os livros dedicados à arquitetura, como o de Yves Bruand, ou ainda aqueles lançados por Le Corbusier ou Koolhaas, impressos mecanicamente e em grande quantidade, constroem, através de seus escritos e imagens uma cultura do saber arquitetônico facilmente disseminável. A prensa móvel de Gutenberg foi uma máquina e como todo produto produzido mecanicamente, o livro também se tornou um objeto com inúmeras cópias que, se não idênticas, muito parecidas umas com as outras. A produção mecânica de textos e imagens tem grande importância para a transmissão de um conhecimento científica ao longo do tempo, a arquitetura não é uma exceção à norma, ela é direta e permanentemente afetada pelo advento da impressão, possibilitando, assim, a conformação de um campo de conhecimento que não se restringe à matéria edificada. O mundo das ideias também é campo de interesse de arquitetos.

No momento da doação do livro de Bruand à biblioteca da FAU-USP, a faculdade contava há apenas um ano com um curso de mestrado que traria novos parâmetros para a pesquisa em história da arquitetura, além de formar um contingente de professores que seriam posteriormente alocados em outros cursos de graduação e pós-graduação no Brasil, disseminando uma determinada matriz de pesquisa para diversas localidades do país. O livro, fundamental em um momento em que a biblioteca se mostrava como um dos poucos lugares para construção de um referencial teórico – uma vez que as ferramentas existentes hoje, como a internet, não estavam lá disponíveis -, se mostrará objeto essencial na conformação de ideias e de um campo para a história da arquitetura e da cidade independentes de uma prática projetual. A biblioteca torna-se o próprio lugar, físico e simbólico, das ideias. As relações institucionais e intelectuais promovidas por meio da FAU-USP ao longo de décadas de funcionamento podem ser lidas hoje através de seus acervos preservados, como aquele presente no Setor de Livros da Biblioteca.

Logo no início do História das Bibliotecas, Barbier enfatiza que a biblioteca congrega um conjunto de discursos e, ela mesma, através das escolhas para o acervo e distribuição do mesmo em categorias, a faz um discurso próprio. Através desta composição de acervos e da sua distribuição em categorias, as bibliotecas universitárias, como a da FAU-USP, exercem uma função estratégica nas transações culturais efetuadas dentro do ambiente universitário, ao longo de sua existência, e devem ser pensadas como elementos estratégicos para o entendimento do passado do fazer científico em nossas instituições, da potência do presente e de políticas para o futuro dos temas, relevos e perguntas que faremos aos objetos de pesquisa e ensino.


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