Livro conta a história dos últimos falantes de português da Índia

“Os Órfãos de Portugal” traz entrevistas com indianos de Goa, Damão e Diu, ex-colônias lusitanas no subcontinente

 01/12/2020 - Publicado há 4 anos
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O livro do professor Eduardo de Almeida Navarro, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP – Foto: Reprodução

Em 2005, o professor Eduardo de Almeida Navarro, do curso de Letras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, viajou para o estado indiano de Goa a fim de realizar uma pesquisa de pós-doutorado no Xavier Centre of Historical Research.

Fascinado com os resquícios da presença lusitana na região, sobretudo o idioma, decidiu empreender uma série de entrevistas com falantes da língua portuguesa, um projeto que se alargou para as cidades de Damão e Diu. Entre junho e agosto de 2005, com uma segunda temporada em janeiro de 2008, conversou com indianos fluentes em português dos mais variados perfis, na busca por um panorama dos vestígios da Índia lusitana.

O resultado desse trabalho é o livro Os órfãos de Portugal, que acaba de ganhar uma nova edição digital para o e-reader Kindle, da Amazon. Publicado em formato físico em 2013 (esgotado), o e-book apresenta entrevistas com cristãos, hindus, muçulmanos, advogados, donas de casa, engenheiros, padres, jovens e idosos. São relatos nos quais o saudosismo e a melancolia se conjugam numa relação complexa com a antiga metrópole.

“Dei ao livro o nome Os Órfãos de Portugal porque o que mais se observa é esse sentimento de orfandade e saudosismo em relação à perda da cultura portuguesa, da língua portuguesa”, comenta Navarro.

Ascensão e queda de um império colonial

Vista de Panjim, capital de Goa – Foto: Reprodução

Goa, Damão e Diu fizeram parte do império ultramarino português desde o século 16 até o começo da década de 1960, sendo as últimas possessões de um país europeu na Índia. A invasão de Goa por Portugal remonta a 1510. Nos anos seguintes – o apogeu lusitano das grandes navegações –, outros territórios do subcontinente indiano seriam tomados: Cochim, Bombaim e Madras, além de Damão e Diu.

O desaparecimento de Dom Sebastião e a união das coroas ibéricas, culminando no declínio português, permitiram que outras potências colonialistas da Europa progressivamente arrancassem algumas dessas áreas aos lusitanos. Ainda assim, no século 18 Portugal anexaria Bicholim, Pernem, Sattari, Antruz, Canacona, Dadrá e Nagar-Haveli.

Com a independência em relação aos ingleses, conquistada em 1947, a Índia passa a exigir a libertação de Goa, Damão e Diu. António Salazar, o então ditador português, recusa negociações e o resultado é uma ação militar de três dias em dezembro de 1961. Era o fim do domínio lusitano no que restara de seu império no subcontinente. É significativo que, no mesmo ano, explodia na África a guerra de libertação de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique.

Goa, com seus 3.700 km², vegetação e praias que lembram o Nordeste brasileiro, sempre foi o mais importante dos três territórios em termos econômicos e políticos, com suas cidades sendo capitais da Índia portuguesa ao longo de quatro séculos. Em seu apogeu, chegou a ser chamada de Roma do Oriente e um dito popular afirmava que “quem viu Goa não precisa ver Lisboa”. A independência fez com que se tornasse um estado indiano, hoje ocupado por cerca de 1,5 milhão de pessoas. Damão, por sua vez, é uma cidade de 72 km² e cerca de 115 mil habitantes, enquanto Diu possui 39 km² e 52 mil habitantes. Atualmente são territórios da União.

O ocaso do português

Apesar de nunca ter sido majoritária nas colônias indianas – Navarro aponta que apenas 3% da população de Goa falava português à época da libertação, sendo o concani a língua principal e hoje o idioma oficial do Estado –, a língua lusitana teve papel decisivo na identidade cultural de seus falantes. Quando deixou de ser ensinada nas escolas – uma das consequências da maneira violenta como se deu a anexação –, parte dessa identidade começou a esmorecer.

A singularidade de Goa, Damão e Diu, aponta Navarro, é que, diferentemente das ex-colônias portuguesas que se tornaram Estados independentes – caso do Brasil, Angola e Moçambique, por exemplo –, na Índia não houve reconhecimento do português como língua oficial. Hoje ela é ensinada nas escolas como uma disciplina opcional.

O professor Eduardo de Almeida Navarro – Foto: Jornal da USP

“É uma situação muito triste”, comenta o professor. “Todos os territórios em que o português é falado, ao se tornarem independentes, continuaram a falar a língua portuguesa porque havia um Estado que a tornava uma língua oficial. No caso de Goa, Damão e Diu, foi muito diferente. Aquela população falante de português deixava de ter um Estado por trás que garantisse sua língua. Eram as raízes culturais daqueles povos e, da noite para o dia, eles deixaram de ter um sustentáculo político para a sua cultura.”

Sob essa condição, conforme aponta Navarro na introdução do livro, a língua portuguesa na Índia enfrenta o risco de extinção. Uma língua primeiramente das elites, verdade seja dita, mas também da literatura e do catolicismo, pontua o professor.

“O que realmente manteve a cultura portuguesa viva foi a Igreja porque, embora eles tivessem deixado de pertencer a Portugal, a religião católica é supranacional”, afirma. “Os bispos e arcebispos de Goa ainda eram falantes de português, os padres continuaram a rezar as missas em português.”

Contradições pós-coloniais

Para captar a complexidade desse quadro – a positividade que representou o fim do colonialismo, de um lado, e o desamparo cultural e linguístico vindo em sua esteira, por outro –, Navarro percorreu Goa, Damão e Diu em busca de pessoas proficientes no idioma português. Fez todas as entrevistas na língua, sem necessidade de traduções, conforme frisa.

O que encontrou foram histórias de vida nas quais essas contradições se entrelaçam e tomam forma. É o caso do padre católico nostálgico pela antiga condição de colônia. Ou do intocável – o nível mais baixo do rígido sistema de castas indiano – que renega o hinduísmo em discurso acalorado. Ou mesmo do muçulmano que, através da fala, explicita o complicado panorama da Índia falante de português.

“Um muçulmano se expressando em português, falando sobre o que é ser muçulmano na Índia, um país em que os hindus são dez vezes mais, em números, do que os islamitas”, comenta o professor.

“Ele apresenta uma situação muito interessante, que nós nem imaginávamos possível: muçulmanos buscando pertencer a Portugal porque tinham um tratamento melhor antes do que pertencendo à Índia, que é maciçamente hinduísta”, complementa Navarro.

Os órfãos de Portugal (e-book), de Eduardo de Almeida Navarro, Kindle/Amazon, 168 páginas.

 

“Foi muito doloroso passar para este novo estado”

Leia a seguir trechos de entrevistas publicadas no livro Os Órfãos de Portugal, do professor da USP Eduardo de Almeida Navarro.

Padre Eufemiano Miranda – Foto: Reprodução/extraída do livro Os Órfãos de Portugal

Padre Eufemiano Miranda, 61 anos

— Padre, depois da ocupação indiana, que é ser um goês hoje? O senhor teve, necessariamente, de mudar uma identidade. Como foi esse assumir uma nova identidade, agora a de indiano, deixando a de cidadão de Portugal?

— A primeira coisa que, durante o regime português, nos marcava era uma certa superioridade em vista, primeiro, de sermos católicos, cristãos e, segundo, de falarmos português. Isso dava uma certa superioridade em relação às pessoas que não eram isso. Portanto, o católico sempre se julgava superior ao hindu. Bem, depois da ocupação indiana, nós chegamos a compreender muito bem que não havia lugar para esses complexos de superioridade. Afinal, o que nos unia é que éramos cidadãos aqui de Goa e complexos simplesmente criariam antagonismos na sociedade. Não poderia haver antagonismos na sociedade, só uma atitude de aproximação, vendo os pontos comuns que nós tínhamos. Cristãos, hindus, muçulmanos, todos nós, afinal, somos goeses e é o que nos une. E gradualmente raiou essa ideia, que, afinal, há os elementos básicos que fazem de nós goeses, e uma das coisas é o substrato cultural, por exemplo, a língua concani. Hoje, põe-se muita ênfase nesse ponto. Afinal, o traço fundamental do goês é ser uma pessoa que conhece bem a língua da terra, o concani, conhece bem a música da terra, a música ligada à língua concani e tudo o mais. Entretanto, o cristão permaneceu e permanece ainda bastante ocidentalizado, e as pessoas não querem deixar essa ocidentalização. Em contrapartida, os hindus que vão aos colégios e vão às universidades, na sua maneira de se vestirem e, depois, na sua maneira de se darem também, estão a ocidentalizar-se. Portanto, estamos numa encruzilhada em que nem tudo está assim bem definido na nossa personalidade, mas todos concordam neste ponto: que nós somos goeses e o que nos une é a língua concani e tudo isso que pertence ao patrimônio de Goa, a música e, depois, nossas tradições, coisa que existe principalmente nas aldeias.

— Este último caso foi o do senhor, não é mesmo? O senhor, como um intelectual, como alguém que aprimorou a sua formação na língua portuguesa, escrevendo, inclusive, uma tese sobre literatura luso-indiana, como sentiu a anexação indiana, que trouxe o inglês como língua europeia dominante também em Goa?

— Eu vou dizer com toda a sinceridade, foi muito doloroso para mim passar do estado em que eu estava para este novo estado. Para mim o português foi uma língua materna, posso dizer, porque eu sempre falei com os meus pais, os meus pais sempre falaram comigo e com os meus irmãos sempre em português, e, até hoje, nós, os irmãos, quando nos encontramos, comunicamo-nos sempre em português, falamos em português e tudo o mais, todas as nossas emoções, os nossos pensamentos, tudo isso é em português. Bom, estando agora em Goa e dado que havia uma mudança, uma reviravolta política, social em Goa, era imperativo, era uma necessidade para mim aprender o inglês e, por força das circunstâncias, eu aprendi o inglês como uma terceira ou quarta língua, porque, na minha formação toda, o português foi a primeira língua, a segunda língua que eu aprendi com todo o gosto foi o latim — era fluente, hoje já perdi a fluência —, depois disso foi o francês e só depois era o inglês. No seminário foi assim. Agora, eu estava em tais circunstâncias que eu tive de aprender o inglês. Afinal, para o meu ministério, eu tinha de poder pregar em inglês, falar em inglês, pensar em inglês, escrever em inglês aquilo que eu fazia em português. Portanto, foi muito doloroso. Mas, como eu gostava e até hoje gosto muito de línguas, aprendi o inglês e aprendi o inglês também com requinte.

— Como o senhor vê o futuro da língua portuguesa em Goa? Existem perspectivas para ela ou ela está condenada a desaparecer aqui?

— Eu acho que o português, como uma língua de comunicação — assim como nós, agora, estamos a falar e a comunicarmo-nos uns com os outros —, não há futuro porque a língua de comunicação hoje em Goa é o inglês. Agora, continuará a haver estudos de português em Goa porque haverá sempre estudiosos, escolas que queiram fazer investigações históricas. Eu diria que hoje o português será uma língua da especialidade, uma língua, uma área em que os estudiosos se especializarão. Portanto, como uma língua de comunicação social, eu não vejo futuro para o português.

Victor Fernandes – Foto: Reprodução/extraída do livro Os Órfãos de Portugal

Victor Fernandes, aposentado, 60 anos

— O senhor se sente identificado com a Índia?

— O senhor se recorda do nosso primeiro encontro, quando o senhor me disse: “O senhor é indiano?”. Todos nós não gostamos muito de ser chamados de indianos porque os indianos são para além da fronteira… Embora sejamos parte da Índia, nós fomos educados de alguma forma na vida portuguesa. E, como tal, nós dizemos que para a outra banda da fronteira existe corrupção, existe toda a espécie de maldades, o que não sucede em Damão… Nós vivemos aqui pacificamente. Um mouro, um hindu e um cristão podem sentar-se à mesma mesa e comer comidas que estão sobre a mesa, que pode ser o porco, pode ser a vaca e pode ser o carneiro. Nem o hindu fica insultado por causa da carne de vaca nem o mouro fica insultado por causa da carne de porco e nós vivíamos numa paz e harmonia que nunca em nenhuma parte da Índia isto é possível.

Sadananda Naike – Foto: Reprodução/extraída do livro Os Órfãos de Portugal

Sadananda Naike, hindu, intocável, 86 anos

— Na época dos portugueses eram muitos os párias, os intocáveis, que falavam português?

— Não, não eram.

— E como o senhor aprendeu português?

— Eu fui para a escola, mas ali também havia diferenças, mas já sobre casta e raça. Não é da parte dos cristãos, os hindus. Mas consegui, consegui aprender. Primeiro aprendi marata. Marata ali, na escola; era dominada pelos brâmanes. Os fundadores, membros e os professores também eram brâmanes. De modo que eu tive que sentar na última fileira. Mas consegui, consegui aquilo.

— Então o senhor sentiu discriminação desde a escola?

— Desde a escola, ainda nos hotéis…, ainda em Goa. Os intocáveis, às vezes, fazem sentar separados, com cadeiras separadas, mesas separadas. O que sucedeu em Mapusá… Tanto que o hoteleiro, depois, teve que responder a essa diferença no tribunal porque na Constituição indiana há um artigo que condena aquilo e dá poder à polícia para tomar conta daquilo. Mas nem toda a polícia: aquilo depende da vontade dele.

— Sob os portugueses a situação dos intocáveis era melhor?

— Não, durante a governação portuguesa aqui na Índia a situação dos intocáveis era péssima. O governo não metia ali a colher, mas os nossos naturais, especialmente os hindus…, odiavam [os intocáveis]. Eles abertamente diziam: “Esta roupa não é para si. Você tem enxada e picareta?”. E é assim que corria e até agora corre. As mulheres bramânicas dizem abertamente… que o trabalho no campo é só para a última classe, para os intocáveis; eles não vão.

 


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