O desafio de trazer “Fausto” para refletir sobre a sociedade atual

Professor da USP lança livro em que propõe nova interpretação da obra máxima de Goethe

 02/04/2020 - Publicado há 4 anos     Atualizado: 09/04/2020 as 13:33
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Montagem com artes de Max Beckmann – Arte: Vinicius Vieira

Repensar o tempo que estamos atravessando com a revolução cultural, as pressões da tecnologia e a crise do desenvolvimento, com os desmatamentos, o aquecimento global e a poluição do planeta, é o desafio de Marcus Vinicius Mazzari, professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Ao lançar A Dupla Noite das Tílias pela Editora 34, o estudioso da literatura alemã traz Fausto, de Goethe, em uma interpretação que responde aos questionamentos da sociedade contemporânea. E também justifica a razão de essa tragédia goethiana ser o clássico mais moderno da literatura mundial. Os leitores vão se deixar envolver por esse novo ângulo de Fausto que Mazzari delineia com erudição, sensibilidade e conhecimento.

O professor Marcus Mazzari, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP – Foto: Arquivo pessoal

Paulista de São Carlos, o interesse pela filosofia e literatura alemãs, que vem desde o curso ginasial, o encaminhou para a graduação em Letras, ao mestrado com a orientação do professor Willi Bolle, na USP, até o doutorado na Universidade de Berlim.

Em entrevista ao Jornal da USP, o professor conta sobre a pesquisa em A Dupla Noite das Tílias: História e Natureza no Fausto de Goethe, um livro denso, informativo e poético. Veja os detalhes dessa conversa:

Jornal da USP – Professor, quais as razões que o levaram à atualidade dessa tragédia goethiana? E como foi travar esse desafio?

Marcus Vinicius Mazzari – À medida que fui me aprofundando no Fausto goethiano, sua atualidade foi ficando cada vez mais nítida para mim, em diferentes aspectos. Já o pacto entre Fausto e Mefistófeles – no qual o dramaturgo inseriu, com genial originalidade, uma “aposta” – encerra em si o ritmo frenético de uma modernidade que Goethe caracterizou, na velhice, com o neologismo “velocífero”, fundindo velocidade e luciferino ou demoníaco. Na segunda parte da tragédia, que Goethe, por razões que ele fundamentou em cartas, não quis publicar em vida, temos no primeiro ato a configuração de uma grave crise econômica, social e política, que Mefistófeles solve, aparentemente, através da invenção do papel-moeda; mas como a nova moeda virtual, que de início provoca uma avalanche de consumismo, não tem lastro, a situação descamba depois para a guerra civil representada no quarto ato. No segundo ato, temos a fantástica criação de um ser de proveta, o Homúnculo, num episódio que Goethe configura com os fundamentos mais avançados da química e da biologia de seu tempo. E no quinto ato, para não me estender muito, temos a tragédia do “desenvolvimento” ou da “colonização”, que faz do Fausto o clássico mais moderno – de uma atualidade dificilmente imaginável – da literatura mundial. Cito apenas as palavras do sociólogo Iring Fetscher, que no posfácio à edição americana de um livro de H. C. Binswanger, Dinheiro e Magia: Uma Interpretação Econômica do Fausto, diz: “Talvez somente hoje, dada a crise ecológica da sociedade industrial, possamos avaliar todo o realismo e a extensão da perspicácia de Goethe”. Muito importante no contexto da “tragédia do desenvolvimento” é também o fato de Goethe ter fundido a agressão à natureza com a carbonização das tílias e à vida humana no massacre do casal de idosos Filemon e Baucis, assim como do Peregrino, em quem o dramaturgo provavelmente retratou a si mesmo num mesmo crime inextricável. Partindo de uma ordem ambígua do colonizador Fausto, o crime é perpetrado por Mefisto e seus três violentos ajudantes – espécie de milicianos assassinos, aos quais o grande artista Max Beckmann, ao ilustrar o Fausto II em 1943, emprestou traços fisionômicos de Hitler, Göring e Himmler. E entre outros nomes que atualizaram o Fausto à luz do nacional-socialismo está o poeta Paul Celan, que alude a versos goethianos em seu famoso poema sobre a Shoá, “Fuga da morte” ou “Fuga sobre a morte”.

JUSP – O senhor pode fazer uma análise do seu trabalho e sintetizar o que os leitores irão encontrar?

Mazzari – Em algumas cartas escritas na velhice Goethe se caracterizou como um “matemático ético-estético” em busca daquelas “últimas fórmulas, mediante as quais o mundo ainda se me torna apreensível e suportável”. Em meu trabalho procurei desenvolver esse conceito de “fórmula ético-estética”, em especial aquela elaborada no final do Fausto II, que busca apreender em perspectiva universal a destruição da natureza, que Goethe já antevia como um grave corolário do progresso econômico e industrial. E, nessa minha interpretação, a poderosa figura da Apreensão, Sorge, que cega Fausto após a destruição das tílias e dos seres humanos, ocupa posição de destaque.

JUSP – O que a sua interpretação busca atualizar?

Mazzari – Muito importante na exegese é também a “fórmula ético-estética” para fenômenos históricos de desapropriação, expurgos étnicos e massacres, o que ensejou referências, por exemplo, aos crimes cometidos em Canudos, denunciados por Euclides. Baseando-se, portanto, nessa perspectiva “ético-estética”, a interpretação busca atualizar o Fausto para nossos tempos. Faz também referências a autores brasileiros, como Machado de Assis, na morte de Rubião em Quincas Borba, comparada com a morte de Fausto, e Guimarães Rosa, assim como a cientistas-viajantes que percorreram o continente americano – Alexander von Humboldt, considerado o patrono da ecologia – e particularmente o Brasil, como o botânico Martius, que após seu regresso à Alemanha estreitou laços com Goethe, que costumava chamá-lo de “Martius, o brasileiro” e o familiarizou com nossos biomas, sobretudo o amazônico. Muito importantes no estudo são as advertências ecológicas feitas por Humboldt, Martius e outros naturalistas. Em minhas pesquisas descobri, por exemplo, o silvicultor Hans Carl von Carlowitz (1645-1714), que 35 anos antes do nascimento de Goethe propunha, no tratado Sylvicultura oeconomica, uma exploração sustentável dos bosques e florestas.

 

A ‘revolução cultural’ deflagrada pela tecnologia digital trouxe também, como reverso, um empobrecimento que atinge diretamente nossa relação com os textos, com a escrita.

 

JUSP – Qual é a sua expectativa em trazer A Dupla Noite das Tílias para este tempo da internet?

Mazzari – O educador e teórico da comunicação Neil Postman definiu toda inovação tecnológica como “espécie de pacto fáustico”, a Faustian bargain, pois toda nova tecnologia “sempre nos dá algo, mas também sempre nos tira algo importante”. A “revolução cultural” deflagrada pela tecnologia digital trouxe também, como reverso, um empobrecimento que atinge diretamente nossa relação com os textos, com a escrita. Por exemplo a cultura epistolar, desalojada cada vez mais por smartphones e e-mails. “Ninguém é mais solitário do que um homem que nunca recebeu uma carta”, observou o escritor búlgaro Elias Canetti, proveniente de uma família de judeus espanhóis e escrevendo em alemão. Para Canetti, isso seria um pesadelo, mas nas sociedades atuais está se tornando a regra. Goethe escreveu cerca de 20 mil cartas, muitas delas verdadeiras obras de arte. Assim se escancara outra faceta do “nosso tempo de internet”, como você pergunta. Goethe anteviu esse desenvolvimento e numa carta da velhice, dirigida a um amigo berlinense, escreveu: “Riqueza e rapidez, eis o que o mundo admira e o que todos almejam. Ferrovias, correio expresso, navios a vapor e todas as possíveis facilidades de comunicação são as coisas que o mundo culto ambiciona a fim de sofisticar sua formação e, desse modo, persistir na mediocridade. Atenhamo-nos tanto quanto possível à mentalidade da qual viemos: com talvez mais alguns poucos, seremos os últimos de uma época que tão cedo não retornará”.

Apesar, porém, desse declínio da cultura escrita, da capacidade de leitura, de concentração e memória das pessoas, é preciso dizer, a partir de experiências na universidade, que há ainda muitos excelentes jovens leitores e que também escrevem muito bem – jovens que se alinham na resistência ao “espírito do tempo” (Zeitgeist). E oxalá essa tendência se fortaleça com as transformações sociais que terão de vir após a superação da atual crise causada pela pandemia. E claro que também os valores da sociedade de consumo são extremamente hostis ao convívio com livros e a cultura de maneira geral.

 

Goethe trouxe para dentro do Fausto todos os grandes embates históricos contemporâneos de sua gênese.”

 

JUSP – Quais são as questões  e temas na travessia de Fausto por vários acontecimentos até a modernidade?

Mazzari – Já o mito de Fausto – um astrólogo, alquimista, mágico etc. que viveu na Alemanha entre cerca de 1470 e 1540 e que adquiriu a fama de ter feito um pacto com o diabo – é o mais importante dos “mitos do individualismo moderno”, como postulado por Ian Watt em seu livro homônimo. É o grande mito das transgressões científicas, tecnológicas e culturais que enterraram de vez a sociedade feudal e deram origem à Idade Moderna. O motivo do “pacto fáustico” se universalizou e está presente em praticamente todas as culturas e literaturas do mundo. O “fáustico” é a transgressão ininterrupta de limites, a expansão irrefreável do “progresso” e por isso as mudanças climáticas podem ser vistas como o grande emblema do pacto fáustico neste terceiro milênio: extenso período de desenvolvimento industrial, de crescimento econômico (para uma minoria, claro) e depois as consequências ecológicas, o preço cobrado por Mefistófeles, a quem o spinozista Goethe, para quem a natureza tinha a aura do mais elevado, já levara a antever o “aniquilamento” de todos os esforços desenvolvimentistas de Fausto.

Goethe escreveu sua tragédia ao longo de 60 anos e nessa gênese sua personagem percorre um arco que vai do período Tempestade e Ímpeto, cerca de 1770, até a revolução parisiense de julho de 1830 e a emergência do socialismo utópico, que Goethe acompanhava com imenso interesse, sobretudo os textos do conde de Saint-Simon e de seus discípulos. Goethe trouxe para dentro do Fausto todos os grandes embates históricos contemporâneos de sua gênese, em especial os desdobramentos da Revolução Francesa e da Revolução Industrial, assim como acontecimentos de 1830. No final do drama, o protagonista adentra o palco como o mais poderoso chef de l’industrie, Saint-Simon, ordenando a portentosa intervenção sobre a natureza que é levada a cabo por Mefistófeles e seus truculentos sicários, carbonizando as tílias (não temos aqui uma “fórmula ético-estética” também para as recentes queimadas na Amazônia?), massacrando pessoas e, nisso, “aconselhando” o velho colonizador com lemas como: “Que cerimônia, ora! e até quando? Pois não estás colonizando?”.

 

Empreender tal leitura atualizadora do Fausto constitui certamente uma tarefa ousada e o risco do erro hermenêutico está sempre presente.”

 

JUSP – Através desse seu novo livro, podemos encontrar uma nova tragédia goethiana? 

Mazzari – Trata-se, em grande parte, de uma leitura “ecológica” da tragédia, uma vez que a representação da natureza, como formula o subtítulo, está em seu centro. Nessa chave, o Fausto é também visto como grande obra do período Antropoceno, caracterizado pelo impacto destrutivo do homem sobre a natureza, a partir da Revolução Industrial, de cujas origens Goethe foi um dos mais argutos observadores.

Um importante apoio teórico para essa nova abordagem veio da estética da recepção, que tem um princípio central no fato de que as sucessivas gerações de leitores podem, a partir de suas respectivas experiências históricas e das circunstâncias em que vivem, concretizar a cada vez de forma diferente os enredos ficcionais e as imagens com que se deparam.

Empreender tal leitura atualizadora do Fausto constitui certamente uma tarefa ousada e o risco do erro hermenêutico está sempre presente. Felizmente encontrei interlocutores abalizados junto aos quais pude pôr à prova hipóteses centrais do livro, como Michael Jaeger, autor de vários livros sobre Goethe e com quem mantenho um intenso diálogo sobre o poeta. Tive também o privilégio de, em 2014, expor a mencionada hipótese de uma “fórmula ético-estética” para a destruição da natureza a dois dos maiores nomes da germanística: Eberhard Lämmert (1924- 2015), que já fora co-orientador de meu doutorado, e Albrecht Schöne (1925), a mais proeminente referência na filologia goethiana.

Mas gostaria de dizer também que não é apenas sob o aspecto da destruição que a natureza aparece no Fausto (e consequentemente no meu livro); a figuração da natureza por Goethe também proporciona ao leitor uma fruição que foi comparada por Adorno, num ensaio que eu discuto intensamente, à “sensação de respirar ao ar livre”.

 

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A Dupla Noite das Tílias: História e Natureza no Fausto de Goethe, de Marcus Vinicus Mazzari, Editora 34, 264 páginas, R$ 53,00.

 


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