Maria Antonia – muito além de uma rua

Alunos e professores da antiga FFCL relembram os 50 anos da Batalha da Maria Antonia

 30/11/2018 - Publicado há 5 anos
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Uma praça de guerra. Assim pode ser definida a Rua Maria Antonia, na Vila Buarque, entre os dias 2 e 3 de outubro de 1968. De um lado, alunos da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e membros do perseguido movimento estudantil. Do outro, estudantes conservadores da Universidade Presbiteriana Mackenzie e pessoas ligadas ao famigerado CCC – o Comando de Caça aos Comunistas. Vizinhas, as duas instituições nunca se deram muito bem. Mas, naqueles dias de outubro, o pote transbordou e a violência tomou conta das ruas.

Ocupado desde julho pelo alunos, o prédio da FFCL na Maria Antonia estava sob as vistas rigorosas da repressão. E quando os estudantes começaram um pedágio para angariar fundos para o congresso da UNE que iria acontecer naquele mês (vale lembrar: não aconteceu. Foram todos presos), o rastilho de pólvora foi aceso. Primeiro, os alunos uspianos receberam uma chuva de pedras. As pedradas foram revidadas, mas depois viraram tiros, coquetéis molotov voavam de um lado para o outro, os agentes da Força Pública e do Dops – que até então viam tudo passivamente – entraram  em ação do lado dos mackenzistas e, por mais de 24 horas, a Rua Maria Antonia se transformou em uma sucursal do inferno.

Resultado: o aluno secundarista José Guimarães, de 20 anos, que estava em meio às manifestações, foi morto (até hoje não se sabe quem deu o tiro fatal); muita gente acabou presa e ferida e o icônico prédio da FFCL da Rua Maria Antonia, incendiado e fechado.

Na sequência, os Institutos de Física, Matemática, Química e Ciências Biológicas, que faziam parte da FFCL, foram desmembrados da escola, e a FFCL foi transformada em Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) – e foram transferidas para a Cidade Universitária, no Butantã. Apenas 25 anos depois, em 1993, o prédio da Rua Maria Antonia foi restituído à USP. Hoje ele abriga um centro universitário que leva justamente o nome da rua que vivenciou uma batalha e virou símbolo de resistência.

A seguir, professores e alunos que estavam na FFCL nos dias da batalha da Maria Antonia relembram, em texto e em vídeo, aqueles momentos de terror e luta. Com exceção dos professores Carlos Alberto Barbosa Dantas e Adélia Bezerra de Menezes, os depoimentos foram dados ao repórter Vinícius Crevilari.

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Maria Arminda do Nascimento Arruda, atual diretora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
Era aluna do curso de Sociologia em 1968

Maria Arminda do Nascimento Arruda – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Na hora em que eu cheguei na rua Maria Antonia (no fim da manhã e início da tarde), já tinha uma movimentação estudantil dentro do prédio da FFCL. Eu me lembro muito bem disso: acontecia a agressão dos integrantes do CCC e o revide da gente da Maria Antonia, com pedras.

Claro que aquele contexto no qual os eventos dos dias 2 e 3 de outubro se deram tinha uma questão anterior. Era o momento da Reforma Universitária, das reivindicações em torno da absorção dos excedentes, das chamadas comissões paritárias. Eu fazia parte de um grupo de estudantes que discutia as paritárias, e me lembro de uma reunião que aconteceu na sala da Congregação da FFCL, em que o professor Octavio Ianni chamou o regime de fascista. Foi a primeira vez que eu ouvi isso com toda a força. “Esse regime não é um regime autoritário. É um regime fascista” ,disse o professor.

A situação era de medo. Naquele episódio da Batalha da Maria Antonia, eu era do grupo que estava na rua, do lado de fora. Estava difícil entrar no prédio. Fiquei lá um longo período. Me lembro de estudantes trazendo baldes de água porque o prédio estava começando a pegar fogo. E chegou uma hora em que estava impossível estar ali.

Para ter acesso ao prédio, você tinha que ficar no meio das pedras e das bombas que esse grupo de integrantes do CCC e do Mackenzie jogava no prédio da faculdade. Então, fomos nos retirando um pouco desiludidos.

Nós temos que, ao menos, lembrar. Cada vez que nos lembramos, reinstituimos nossas identidades e nos damos conta da barbaridade que aconteceu.

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José Álvaro Moisés é professor titular de Ciência Política da FFLCH e diretor do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da USP
Em 1968 era aluno do curso de Ciências Sociais da FFCL

José Álvaro Moisés – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Eu era do movimento estudantil da época, mas ao mesmo tempo trabalhava no jornal Folha de S. Paulo, fazia cobertura do movimento estudantil. Eu estava numa condição especial como estudante e como jornalista. Mas antes da batalha, pelo que eu me lembro, houve a ocupação do prédio da Maria Antonia. [A  ocupação se deu entre julho de 68 e 3 de outubro daquele ano, no último dia da batalha.]

A faculdade estava ocupada pelo movimento estudantil ― inclusive não só o movimento estudantil da faculdade, mas o movimento estudantil geral, da Cidade e do Estado de São Paulo. E no Mackenzie, um grupo de estudantes ― que nós da Maria Antonia considerávamos como de direita e conservadores ― se associou com as forças do Dops e passaram a hostilizar os estudantes que ocupavam o prédio da Maria Antonia. Esse foi o estopim inicial, uma hostilização entre o grupo do Mackenzie e o grupo da Maria Antonia.

A invasão começa com as forças policiais, mas ao mesmo tempo teve bombas. Foi uma invasão com características de guerra contra os que estavam ocupando a faculdade. Então, isso fez com que progressivamente houvesse uma tentativa de resistência com hostilidades de parte a parte, mas depois ficou claro que as forças da polícia e do Mackenzie eram superiores aos estudantes que ocuparam a faculdade e nós tivemos que sair da ocupação. Desocupar para evitar um conflito que poderia ter causado mais mortes do que a do estudante secundarista José Guimarães, que foi morto numa das manifestações que ocorreram num desses dias da batalha. A batalha durou mais que 24 horas e não me lembro de ter tido trégua.

O diretor da faculdade, o Eurípedes Simões de Paula, tentou estabelecer um diálogo com o movimento estudantil, através de alguns catedráticos (entre os quais o Florestan Fernandes), para convencer os estudantes a não ocuparem o prédio da Maria Antonia. E nós ― estudantes do movimento estudantil e membros da comissão paritária ― recusamos a proposta de desocupar. Veja que são essas pequenas decisões que às vezes levam a um problema que depois se transforma num desastre, numa catástrofe.

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Walnice Nogueira Galvão, Professora Emérita da FFLCH
Era professora de Teoria Literária na antiga FFCL em 1968

Walnice Nogueira Galvão – Foto: Reprodução / Arquivo pessoal

Eu estava lá. Estava dando aula quando começaram a bombardear a faculdade. Eu tive que evacuar meus alunos, como se estivessem em uma guerra, por dentro da faculdade, pelo pátio, através da Faculdade de Economia, na Rua Dr. Vila Nova. Não dava para deixar que saíssem pela frente, pois meus alunos seriam vítimas de bombardeios.    

A FEA ficava no mesmo quarteirão que a Rua Maria Antonia, não tinha nem que atravessar a rua – a gente ia de uma unidade para outra por dentro, pelo pátio da FFCL. Depois de tirar meus alunos do prédio, eu voltei para a Maria Antonia. Voltei porque achei que era meu dever.

Foi uma coisa horrível. Nunca passou pela cabeça de ninguém que eles fossem capazes de bombardear e incendiar uma escola. Foi uma coisa absolutamente espantosa. Fico espantada até hoje.

Mas eu achava que eu tinha que estar lá, era o meu lugar, era o meu local. Eu estudei naquela faculdade, eu me formei lá e eu passei a trabalhar lá. A FFCL era meu projeto de vida.

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Mais informações sobre a Batalha da Maria Antonia:

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Artigo de José de Souza Martins, Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

https://jornal.usp.br/artigos/1968-nas-entrelinhas-do-silencio/

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Evento de lançamento do Livro Branco sobre os Acontecimentos da Rua Maria Antonia (2 e 3 de outubro de 1968) e do livro Maria Antonia: Uma Rua na Contramão

https://jornal.usp.br/cultura/professores-revivem-legado-da-maria-antonia/

  

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